por Danilo Baltieri
Doutor, minha tia iniciou uso de morfina devido a um trauma que sofreu na perna há 5 anos. No entanto, após a cirurgia e fisioterapia, ela não consegue ficar sem a droga e me parece que ela pede a medicação mais para se tranquilizar do que para diminuir a dor. Como lidar com a situação ? Os médicos estão desconfiados de que ela esteja manipulando para obter mais a droga e a situação dentro de casa está ficando insustentável.
Resposta: Certamente, situações como esta são absolutamente preocupantes. Para responder a esta importante pergunta, terei que discorrer um pouco sobre o processo diagnóstico dos quadros dolorosos crônicos e a interface com o uso de medicações do tipo opioides, como a morfina.
O uso de opioides
Nos casos de dor moderada ou severa, o uso de medicações opioides, como a morfina, frequentemente é aventado, como monoterapia ou combinado com outros medicamentos ou formas de tratamento. Contudo, pacientes encontram barreiras nessa forma de abordagem, especialmente quando os opioides são indicados.
Essas barreiras incluem:
a) Inadequada formação médica em relação ao uso e problemas relacionados aos opioides;
b) Dificuldades dos profissionais de saúde em estabelecer a diferença entre dependência fisiológica, síndrome de dependência e pseudodependência;
c) Medo de que os pacientes se tornem dependentes ou "viciados";
d) Preconceito em relação às medicações opioides.
Dependência ou não?
Existe a possibilidade de pacientes com quadros dolorosos crônicos desenvolverem quadros de síndrome de dependência às medicações opioides. Entretanto, é necessária uma criteriosa avaliação por especialistas sobre essa possibilidade.
Conhecer as definições de pseudodependência, síndrome de dependência e dependência fisiológica é importante ferramenta cognitiva para o médico evitar erros diagnósticos e preconceitos diante dos pacientes em uso dessas medicações.
Dependência fisiológica: consiste em um estado de adaptação cerebral manifestado por evidência de tolerância (necessidade de doses cada vez maiores para obter os mesmos efeitos anteriores, ou perda progressiva dos efeitos desejados em paciente recebendo a mesma dose durante o tempo) e/ou estado ou síndrome de abstinência (sintomas físicos e/ou psicológicos advindos da parada ou redução abrupta da medicação, manifestados por aumento da frequência cardíaca, aumento da pressão arterial, sudorese, inquietação, bocejos, midríase (dilatação da pupila), recrudescimento da dor, cãibras, piloereção).
Dependência fisiológica é um fenômeno neurofarmacológico, como resultado da neuroadaptação. É esperado que a maioria dos pacientes usuários crônicos destes agentes apresente essa forma de dependência.
Pseudodependência: consiste no tratamento da dor com doses inadequadamente baixas de opioides, o que leva o paciente a queixar-se de dor frequentemente, apesar do uso das medicações. Aqui, o médico deve reavaliar criteriosamente a doença e estabelecer uma correlação entre o processo fisiopatológico e o sintoma da dor.
Síndrome de dependência: é caracterizado por sinais e sintomas associados a um uso patológico de opioides. É uma doença crônica, com raízes neurobiológicas, comportamentais e psicossociais, com o envolvimento de fatores ambientais. É caracterizada por um comportamento que pode incluir: perda de controle sobre o consumo da droga, uso compulsivo, uso continuado apesar das consequências nocivas e fissura ou "craving".
Síndrome de dependência e grupos de pacientes
Desta forma, quando estamos diante de um paciente com dor crônica, sendo tratado com opioides prescritos, podemos verificar três grupos de pacientes, classificados de acordo com a presença ou ausência da síndrome de dependência:
a) Paciente com dor crônica, em tratamento com opioides prescritos, SEM uso patológico;
b) Paciente com dor crônica, em tratamento com opioides prescritos, mas COM uso patológico;
c) Paciente com dor crônica, sem tratamento médico, mas utilizando opioides por conta própria.
O primeiro grupo de pacientes constitui a grande maioria daqueles encontrados em clínicas de dor. Os grupos "b" e "c" causam preocupação, devido ao uso inadequado das medicações prescritas.
A partir destes conceitos, é necessário que o profissional da saúde diferencie o paciente com dor crônica em tratamento com opióides que está apresentando síndrome de dependência daquele paciente com dor crônica em tratamento com opioides sem síndrome de dependência.
Para isso, o quadro abaixo pode
Sem síndrome de dependência Com síndrome de dependência 1. Paciente tem controle sobre o uso da medicação. 1. Paciente perde o controle diante do consumo da medicação. 2. O consumo das medicações melhora a qualidade de vida do paciente. 2. O consumo da medicação piora a qualidade de vida do paciente. Ele começa a apresentar prejuízos sociais, familiares e laborais. 3. Paciente relata efeitos colaterais ao médico. Fala ao médico que o opioide lhe causa tontura, visão borrada, etc. 3. Nega efeitos colaterais. Pelo contrário, diz ao médico que necessita de mais dose de opioides para aliviar sintomas de ansiedade, depressão, tristeza e irritação. 4. Paciente preocupado com seus problemas médicos e com a possibilidade de tornar-se dependente. 4. Paciente não se preocupa com os problemas médicos. 5. Paciente seguirá adequadamente o planejamento terapêutico. 5. Paciente não seguirá o plano terapêutico, utilizando-se de mais opioides do que os prescritos ou de outras medicações. 6. Frequentemente sobram medicações opióides na casa do paciente. 6. O paciente costuma "perder" receitas ou "forjar" receitas para angariar mais comprimidos.
Existem algumas outras "dicas" que podem ajudar no correto diagnóstico da síndrome de dependência de opióides em pacientes submetidos a tratamento crônico com essas medicações:
a) Comportamento de busca de droga (visitas frequentes a serviços de emergência médica, para obter medicação, sem o conhecimento do seu médico; obtenção de medicamentos através de outros recursos, como amigos, familiares, traficantes; atitudes de "forjar" receitas; mentiras frequentes sobre "perdas" de receitas);
b) Comportamentos de automedicação (aumento da dose, sem orientação médica; uso do opioide para aliviar outros sintomas, como ansiedade, tristeza, angústia);
c) História pessoal e familiar de síndrome de dependência de substâncias (este item se refere ao aspecto genético das síndromes de dependência. Apesar de muitos dependentes químicos em remissão com quadros dolorosos manifestarem preocupação com a possibilidade de se tornarem dependentes das novas medicações administradas, outros dependentes químicos podem apresentar consumo patológico dessas novas medicações prescritas);
d) Evidência de prejuízos sociais, familiares e no trabalho, associados ao consumo progressivo dos opioides;
e) Administração concomitante de outras drogas, como álcool, benzodiazepínicos, maconha, etc;
f) Abuso de opióides injetáveis.
Apesar disso, a síndrome de dependência de opioides aparece em apenas cerca de 3 a 16% dos pacientes com dor crônica em tratamento com agentes opioides. Percentagens exatas são difíceis de determinar, já que muitos estudos que avaliam a prevalência da síndrome de dependência entre esses pacientes costumam apresentar problemas metodológicos, como heterogeneidade na definição de "dependência", amostras heterogêneas e pequenas.
É sempre desejável que exista um psiquiatra especializado em dependências químicas na equipe multiprofissional a qual presta atendimentos a pacientes com quadros de dor. Nos casos onde há dúvida sobre uma dependência fisiológica, pseudodependência ou mesmo de síndrome de dependência, o psiquiatra especialista deverá propor adequadas formas de manejo para auxiliar o paciente na resolução do problema.