Por Cybele Russi
As lições nunca foram um peso para mim, pelo contrário, eram um momento de enorme satisfação. É verdade que minha mãe soube conduzir o processo desde o início com grande sabedoria. Ela simplesmente dizia: para mim e para o meu irmão: "Podem fazer a lição que estou aqui, se tiverem alguma dúvida é só me chamar." E pronto.
Raramente eu tinha dúvidas. Na verdade, quase sempre nós é que lhe dávamos longas explicações sobre a matéria aprendida. Muitos anos mais tarde, descobri que essa foi uma estratégia muito inteligente que ela desenvolveu para nos mostrar o quanto havíamos aprendido, ou seja, um tipo de chamada oral disfarçada.
Ela fazia de conta que não sabia, por exemplo, como tinha acontecido a Independência do Brasil e me fazia falar horas sobre a Independência, como se eu a estivesse ensinando. Era o máximo, porque eu acreditava que estava, de fato, ensinando muitas coisas novas para minha mãe, e quando eu dizia alguma coisa errada, ela simplesmente dizia, "Puxa, eu pensei que tivesse sido assim…assim….assado…"
Como eu detestava Matemática, ela inventava uns problemas meio malucos para eu resolver, do tipo problemas gastronômicos, como quantos quilos de tomates é preciso para se fazer um molho para seis pessoas, se considerarmos que cada pessoa consome duzentos gramas de molho e que cada tomate pesa em média cinqüenta gramas. Nossa, aquilo sim, era um problema difícil de resolver…
Tormento familiar
Mas, de alguns anos para cá, a lição de casa se tornou o tormento familiar. Pai, mãe, dois ou três filhos sofrendo diabolicamente ao redor de livros e cadernos, como se submetessem a um suplício diário, imposto por uma entidade maldita chamada Escola.
Não sei precisar exatamente quando isto aconteceu, mas depois que a lição de casa se tornou um assunto de família, as coisas também mudaram bastante dentro da escola e com resultados ruins para o aluno. Ao ajudar o filho a fazer o dever de casa, não está se fazendo um bem, mas criando um péssimo hábito na criança.
O objetivo do dever de casa
A lição de casa, muito ao contrário do que se possa imaginar, não é uma espécie de castigo ou punição que a escola impinge ao aluno, ela tem objetivos pedagógicos muito claros e definidos ao ser solicitada. O primeiro e mais importante de todos, é o de permitir à criança que entre em contato com seu próprio saber, ou com seus conhecimentos prévios, como costumamos dizer.
Quando uma lição nova é dada em sala de aula, dificilmente o aluno consegue assimilar 100% da explicação. Em geral, a criança absorve de 30% a 60% do que o professor explica. Excelentes alunos retém de 80% a 90%. Portanto, há uma boa parte de conhecimento que fica perdida, ou não assimilada pelo aluno. E o momento em que ela poderá resgatar essa perda é justamente o da lição de casa, quando mais uma vez ela poderá entrar em contato com o que aprendeu e entrar em contato com seus próprios saberes, que é o estágio mais significativo da aprendizagem, pois é quando vai confrontar o que já sabe com o novo, com o que acabou de aprender, criando assim, novos significados para seu saber. É quando ela levanta suas hipóteses e as dúvidas começam a surgir. Este é um momento riquíssimo da aprendizagem, porque novas possibilidades começam a se abrir, novos modos de raciocinar sobre uma mesma idéia. E então acontece a autonomia do pensamento: a criança descobre que tem suas próprias idéias, que nem sempre coincidem com as que já estão formuladas.
Entretanto, este é um processo solitário, pois exige que a criança entre em contato com seu mundo interno .Para isso, ela precisa de tempo, de tranqüilidade, e de organização, que são recursos que vão sendo construídos ao longo da vida escolar.
Quando a família participa muito ativamente do processo, acaba roubando da criança essas oportunidades, reforçando-lhe seus sentimentos de incapacidade e de impotência, de insegurança, de medo de errar, de não acreditar em sua própria capacidade de resolver problemas e de encontrar soluções, de não acreditar no seu próprio saber. Então, cria-se uma espécie de ciclo vicioso: diante da lição, sua primeira atitude é dizer: não sei fazer. E imediatamente, a família corre para ajudá-la, e quase sempre, acaba fazendo a lição por ela.
Se a criança, de fato, não sabe a lição, é melhor levá-la para a escola sem fazer, ou mesmo feita com erros, pois o outro objetivo da lição de casa é avaliar o quanto os alunos aprenderam e entenderam do conteúdo que foi dado O erro do aluno é o feedback que a escola tem para saber o que não está indo bem. Se a criança traz a lição toda feita com a ajuda dos pais, a escola perde essa oportunidade de avaliar e, portanto, de retomar o que não ficou claro, e aquilo é dado como aprendido, quando na verdade, não o foi. Além disso, a criança terá perdido uma ótima oportunidade de aprender a lidar com o erro, com o fracasso, com o não-saber, com a possibilidade de romper a barreira da timidez e pedir novas explicações e, também, de aprender a negociar através da argumentação lógica.
O papel dos pais em relação ao dever de casa
O papel da família na hora da lição de casa é o de criar um ambiente tranqüilo, de fornecer material necessário, de respeitar o ritmo da criança e, sempre que possível, fazer daquele momento, um momento de diálogo, de troca; uma oportunidade a mais de conversa em família; um espaço onde novas idéias possam surgir. Enfim, deve ser um momento de alegria para todos. Caso contrário, vira castigo mesmo, e uma excelente arma de manipulação nas mãos dos filhos.
A criança se sente extremamente valorizada e autoconfiante quando percebe que pode realizar suas tarefas sozinhas e, com isso, sua autonomia e auto-estima aumentam muito. Com o tempo, ela vai incorporando o hábito das lições na sua rotina, de modo que se torna uma atividade tão comum quanto outra qualquer. Mas o melhor mesmo é quando ela diz, com os olhos brilhando: "Fui eu que fiz!"