Pandemia: biossegurança X ‘bioinsegurança’

Nesta pandemia tenho dificuldade de entender ou aceitar algumas coisas.

Na minha cidade, São Paulo, os meios de transporte coletivo sempre ficam lotados na maioria das linhas no horário de pico. Isto vai das cinco às nove horas pela manhã e das 17 até às 21 horas, mais ou menos. Há trabalhadores que, por exemplo, fazem três, quatro baldeações para chegarem ao trabalho, gastando nesse processo cerca de duas ou três horas. Esta é a extenuante rotina dos moradores das cidades circunvizinhas ou de bairros periféricos. Tarifas caras, serviço ruim, degradante.

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Aí chegou a epidemia, derrubando a saúde de muitas pessoas, ceifando vidas a olhos vistos e praticamente esgotando os recursos da saúde pública. Crise geral. Mas as pessoas precisam que a cidade (mal e porcamente) funcione mesmo nesse contexto com o vírus SARSCOV-19 à espreita de vítimas.

Isolamento social é um grande luxo


E aí o óbvio se evidencia: há um exército de pessoas que não ficarão em casa, precisam trabalhar para haver produção, distribuição e comercialização de alimentos, remédios, outros produtos essenciais, combustíveis, suprimentos. Serviços de saúde como hospitais, laboratórios e farmácias exigem um contingente enorme de pessoas para funcionarem a contento, com ou sem epidemia. Trabalhadores do setor de fornecimento de energia elétrica, gás, água e saneamento, rede de dados, todos são indispensáveis. E o lixo? Coleta e varrição precisam acontecer, Serviços bancários também não param por completo. Poderia gastar mais um parágrafo e não teria esgotado a listagem dos trabalhadores essenciais, além é claro, dos igualmente valorosos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, motoristas de ambulância etc.

O governo, em seus múltiplos níveis (com lamentáveis exceções) salienta sem parar a necessidade de isolamento social, limpeza das mãos e de superfícies e o uso de máscaras.



E por que, mesmo na vigência da pandemia, os ônibus, trens e metrôs permanecem lotados? 


Os trabalhadores essenciais, geralmente protegidos nos ambientes laborais, são obrigados a se locomoverem de casa ao trabalho e também no fim de cada jornada como se fossem sardinhas em lata?

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Vi hoje no noticiário da TV o percurso de um trabalhador: sai de casa por volta das quatro e meia, e toma três ônibus e dois metrôs para trabalhar na cozinha de um estabelecimento. No dia que foi filmado, levou três horas e meia no retorno. Só estava bom o primeiro ônibus, que pega ainda vazio. Um deles sequer podia fechar a porta, de tão lotado que estava. E assim mesmo o motorista seguiu o caminho. Aliás, os motoristas e cobradores dos veículos, transbordando de humanos tratados de modo pior que galinha em granja, trabalham sob condições absolutamente insalubres para a Covid-19.

Biossegurança X ‘bioinsegurança’

O que leva o poder público a fazer tanta vista grossa para o óbvio risco diário ao qual essa numerosa camada da população está exposta nos meios de transporte? Ao chegarem nos locais de trabalho são sujeitos a protocolos de biossegurança que contrastam brutalmente com o percurso entre casa e trabalho, caracterizado por uma consentida bioinsegurança. Quem tem poder nada faz para reverter a situação aviltante. Será que vírus não anda de ônibus? Não é bem isso. Pessoas com poder não moram nas periferias e não andam diariamente de transporte coletivo. Para as autoridades, basta que o funcionário chegue na hora certa ao trabalho e o trabalho seja bem realizado, com a aura de higiene necessária. O que estes milhões de gente sofrida passam fora do trabalho é questão de menor importância, por acaso?

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Tenho muitas outras indagações, paro aqui por hoje, perplexa e impotente. Aliás, temos algum poder por meio do voto. Não nos esqueçamos disso.