Julio Cortazar, escritor argentino, descreve em seu conto “A autoestrada do sul”, publicado em 1966, um imenso congestionamento na volta de um feriado numa estrada nos arredores de Paris. Desde o início da quarentena e deste período de isolamento, este conto tem estado comigo como que a lembrar a necessidade da percepção e constante cuidado com o trânsito entre as polaridades da paralização e do movimento.
Que relações são criadas durante a paralização?
Explico: o conto fala da interrupção súbita da circulação dos automóveis em uma autoestrada que leva de volta a Paris. Em um determinado momento, sem nenhum aviso prévio, acontece a paralização e da mesma forma, também de maneira abrupta, o congestionamento é dissolvido e os automóveis entram em acelerada movimentação perdendo contato com as relações criadas durante aquela paralização. No início do conto, por um breve período de tempo, os “habitantes” daqueles automóveis, esperam a volta do movimento, imaginando que o congestionamento logo será dissolvido, o que não acontece senão após um longo período de tempo, sem nenhum aviso.
Para onde nos leva a experiência do isolamento social?
Nossa experiência do isolamento social, durante o período de pandemia, aconteceu também de forma abrupta. Embora as notícias sobre o vírus já estivessem chegando até nós, foi de forma repentina que nos recolhemos a nossos espaços de isolamento. Cada um de nós foi “obrigado” a permanecer em sua casa, inventando novas formas de relacionamento com o trabalho, a casa, nossos companheiros próximos e nossos queridos distantes, que de forma virtual, estão também conosco. Como se em um tempo fantástico, podemos dizer com Cortázar “No hago diferencia entre la realidad y lo fantástico, para mi lo fantástico procede siempre de lo cotidiano”.
O fantástico entrou em nosso cotidiano, sem que nos déssemos conta
E o movimento externo em nossa vida, assim como o trânsito na autoestrada do sul, parou. A estrada e aquela situação instauraram algo da ordem da novidade, provocaram uma alteração na vida daquelas pessoas, na qual o que era o normal, o cotidiano está a partir de agora profundamente abalado. O isolamento vivido, de forma normal, dentro do automóvel movimentando-se em direção a Paris foi forçosamente rompido pelo congestionamento. A partir do momento em que os automóveis param, a vida que existe e acontece dentro deles é liberada.
Temos uma única saída
E, então, quando a própria existência está em risco, quando o funcionamento automático habitual é rompido, o estabelecimento de novos vínculos de relacionamento, a criação de outras redes sociais, a possibilidade de olhar para o outro de forma diferente surge como a única saída. Em busca de uma resposta coletiva, nacional, e por que não global, somos levados a atitudes individuais de isolamento e cuidado.
Em nome da alteridade temos de ser cada vez mais responsáveis por nós mesmos e nossas relações. E assim, um tempo, por assim dizer, paralisado, ou suspenso, é acompanhado da sensação de infinito, quase uma cápsula temporal. Mas no conto, como na vida, o real se dá e o movimento, literalmente pode ser alterado.
E paradoxalmente não será também a percepção de paralisação que pode dar movimento à vida? Não será este também o mote para profundas transformações? Já nos disse há muito tempo, Jung, que a fixação é o problema. E, não estaremos nós muito habituados a movimentações automáticas, acreditando em um movimento tão automático que passa a ser paralisação. Em que movimento estamos nós afinal?
Quais relações foram estabelecidas nesse período de isolamento?
Como no conto, vivemos o paradoxo da movimentação a partir da paralização. Penso nas diferentes relações que foram estabelecidas neste período de isolamento social, entre nós e dentro de nós, nas várias descobertas que foram feitas, na possibilidade de lidar com o tempo a partir de outro referencial. E também nos trabalhos que pudemos realizar de forma virtual, na vida que pode fluir sem os congestionamentos habituais, energia liberada para outras maneiras de fruir o tempo e o espaço.
E, então, com a liberação do isolamento compulsório se aproximando, muitos de nós vivem o desconforto da volta à vida assim chamada “normal”. Como não perder os ganhos acumulados durante este período, como manter as ricas conexões e descobertas conseguidas no período de paralização. E quando a estrada voltar a fluir novamente, como seguiremos nós?
Termino com Cortázar:
“E, na antena do rádio flutuava alucinadamente a bandeira com a cruz vermelha e se corria a oitenta quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, porque essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente.”