por Pedro Tornaghi
A bola atrai o fascínio não apenas do homem, dei uma bola de pingue-pongue ao meu gato e, desde então, parece não haver mais perigo de tédio em casa, toda hora o vejo correndo, passando a bola de pata em pata, com uma habilidade e rapidez de dar inveja a Messi e Neymar. Ele brinca com a mesma inocência que brinquei com minha primeira bola e com a mesma animação com que minha filha gostava de jogar comigo, horas a fio, na varanda de casa quando pequena.
Que relação mágica é essa, o que essa atração significa?
A bola é um ponto ampliado, e carrega consigo a ideia de perfeição da forma, um objeto proporcional em todas as direções, com o equilíbrio e harmonia desejados no fundo de qualquer alma humana. Essa expressão da perfeição ambicionada por todos, está ao alcance das mãos – e dos pés – de qualquer ser humano comum. É a democratização da perfeição, do divino, do Universo.
O mundo é redondo, o Universo é redondo, o tempo é redondo, a pedra que rola no rio se arredonda e, na sua tragédia particular de se ver carregada por uma corrente acima de suas forças, se aproxima do universal. O redondo é o equilíbrio em movimento, em lugar do equilíbrio estático do cubo.
O Brasil tem vocação para lidar com os pés
A bola é uma representação do espírito. E brincar com ela em uma arena de esportes, é poder relacionar o espírito com o tempo e o espaço, ver a presença do que é essencial inserida na matéria, se relacionando com ela. Sim, quando jogamos bola, nosso inconsciente elabora, integra e pode harmonizar a relação entre espírito e matéria, entre indivíduo e ambiente, entre o que se possui de mais particular e o coletivo. Brincar de bola pode ser um ritual de reintegração ao cosmos. Um sentir-se novamente parte do Universo que nos sustenta.
A bola exerce sim fascínio, mas nos pés parece exercer ainda mais. A Copa do Mundo de futebol rivaliza com as Olimpíadas – que soma o futebol a todos os outros esportes – enquanto preferência de interesse do público. As razões são muitas, mas talvez uma seja a principal.
Pode-se dizer que os pés estão para a emoção e a intuição com as mãos para o pensamento crítico e objetivo, detalhista, técnico. Na astrologia os pés estão ligados a Peixes, signo que age por inspiração e as mãos são regidas por Virgem, signo que passa suas escolhas por filtros e critérios intelectuais. A precisão com os pés se alcança pela sensibilidade, a das mãos pela técnica.
Dessa maneira, é fácil imaginar por que o futebol exerce essa atração inconsciente em multidões. E por que um país com a cultura do método como os Estados Unidos tem o basquete como esporte de massas e por que no Brasil, país da improvisação e movido por emoção e inspiração, o futebol é tão onipresente. O Brasil parece predestinado ao futebol, antes mesmo do esporte ser inventado, sua bandeira já era instituída como um campo retangular e verde com uma bola azul no centro, como que esperando o chute inicial para a partida começar. E, a bola traz dentro de si um arco, sugerindo um passe à distância, sinuoso, com malícia e ginga, com noção de espaço. Como se os precisos e longos passes de Gérson e as curvas no ar de Didi, já fossem profetizados em meio aos sonhos de ordem e progresso. Talvez essa ordem ainda não tenha chegado por aqui, mas as curvas e dribles, já são há muito patrimônio cultural do país.
O Brasil tem uma ligação forte com o signo de Peixes, embora a quase totalidade dos astrólogos hoje em dia acredite que o ascendente do país seja Aquário, o colocam nos graus de passagem para Peixes. O Brasil tem vocação para lidar como os pés, é o país do samba, do xaxado, dos que gostam de pisar fundo no acelerador, dos bons utilizadores dos pedais do piano para tocar notas "ligadas", do surf, dos inúmeros campeões de skate, do windsurf… Enquanto a América do Norte valoriza o boxe, o Brasil exporta a capoeira, uma luta que privilegia os pés, e vemos seus astros de MMA se destacarem pelo emprego de poderosos chutes. Que, como um bumerangue pisciano, por vezes se voltam contra eles mesmos.
Vivemos em um país onde os pés gostam de sentir a terra. Em minha última viagem ao Nordeste, me lembro quando entrava com diferentes grupos em mangues, a primeira coisa que os brasileiros faziam ao descermos de barcos, era tirar sandálias para sentir os pés no chão, enquanto turistas estrangeiros muitas vezes nem sandálias usavam, mas tênis que os protegiam por inteiro de qualquer contato maior com o chão. Me lembro do dia em que conheci João do Vale. Eu era flautista e ia tocar em um show com ele e seu filho Nonato do Vale, ensaiei à tarde com Nonato, que me apresentou às músicas do repertório, mas João só conheci na hora do show. Cinco para as dez, já com a plateia cheia, João saltou descalço de um ônibus, e veio a pé, descalço, até o teatro. E assim entrou em cena. E assim voltou para casa no final. Descalço. Ele era assim. Eu, que acabara de voltar dos Estado Unidos, onde estudara em um conservatório metódico e conservador, fiquei imaginando se seria possível ver um músico chegar de pés no chão por lá. Acredito que não.
A capacidade do brasileiro de sentir o chão com os pés está ligada à sua enorme sensibilidade. Mas também à sua espiritualidade. O signo de Peixes e os pés na astrologia estão ligados à fusão do homem com o todo. A bola é a própria representação do todo. Tocá-la é o início dessa fusão. Poder se enrolar com ela e rolá-la gramado afora é a possibilidade de entrar em harmonia com todo o Cosmos. Futebol é a dança do Universo acontecendo em seus pés, é ter o Universo a seus pés… amigavelmente, no melhor estilo pisciano. Cordialmente, como é preferência nacional.