Por Rebecca Gompertz
"Há uma falta de conexão entre a realidade proposta no material com a dos usuários do sistema de saúde pública"
A segunda edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, lançada em 2014, foi elaborada em uma parceria do Ministério da Saúde com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. O material buscou trazer uma abordagem inovadora, menos focada em grupos alimentares e quantidades de nutrientes a serem ingeridos e mais preocupada com a construção de uma compreensão ampliada sobre alimentação, que inclui não só o olhar sobre o alimento, mas também para as refeições, modos de comer e a relação disso com o meio ambiente.
Agora, acaba de ser finalizada a primeira pesquisa levantando problemas no material, como parte do pós-doutorado da pesquisadora sênior do grupo de pesquisa Comunicação Pública e Política, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Devani Salomão de Moura Reis. O trabalho buscou avaliar a eficácia do Guia no combate às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), em especial a obesidade.
O pós-doutorado foi iniciado em 2015 e analisou as respostas de nutricionistas de diversas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da cidade de São Paulo a um questionário de 60 questões abertas elaboradas pela pesquisadora. Com base nele, apontou-se, por exemplo, que 70% das nutricionistas afirmam que há dificuldades em convencer o paciente a consumir gorduras adequadamente. Sobre o consumo de sal, 66,7% dizem o mesmo.
Sobre a motivação para a pesquisa, Devani Reis evoca sua longa trajetória investigando as questões da comunicação no âmbito da saúde pública. Desde o mestrado, no qual analisou como médicos e pacientes enxergavam um ao outro, passando pelo doutorado, no qual criticou a cartilha Viver mais e melhor, do Ministério da Saúde, até este quarto pós-doutorado, que tem como objeto de estudo o Guia, sempre se dedicou à área da comunicação na saúde pública. Para ela, “é hora de mostrar que a comunicação é importante na área da saúde. Muito importante porque, desde o estudo do mestrado, quando avaliei que os pacientes têm dificuldades de falar com o médico porque o enxergam como um deus, percebi que falta interlocução”.
Elaboração coletiva
Segundo Maria Laura da Costa Louzada, que fez parte da equipe do Nupens durante o projeto de atualização do Guia em 2014, essa nova versão se fez necessária por conta da série de transformações pelas quais o Brasil havia passado desde 2006, quando a primeira edição foi publicada. “O Brasil passou por um intenso processo de mudanças econômicas, sociais e políticas e por uma transição epidemiológica. O cenário de desnutrição deu lugar a um cenário de diabete e de hipertensão. Junto a isso, tivemos uma grande evolução nos conhecimentos da nutrição, o paradigma da alimentação mudou”. Para ela, que fala em nome dos outros colaboradores do Nupens envolvidos, o principal ponto positivo do material é enxergar a alimentação como algo maior do que só os alimentos, considerando também as combinações, seu valor cultural, sensorial e ambiental ligado ao ato de se alimentar.
Maria Louzada relembra também o processo de elaboração e revisão do Guia, bastante coletivo e preocupado em ser inclusivo. “Entre 2011 e 2013 aconteceram duas oficinas na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, com pessoas de todo o Brasil e de diversas áreas, como trabalhadores de ponta da área da saúde, da educação, da educação popular, da saúde dos negros e negras e da associação de vegetarianismo. Essas pessoas leram o Guia, debateram com a gente e tivemos um processo de construção coletiva, que não foi feito só pelo Nupens. Em 2013, foi realizada a consulta pública, que ficou três meses aberta. Recebemos mais de três mil contribuições, mudamos diversas coisas. Evoluímos muito com esse processo, muitas coisas que podiam ter sido melhoradas, de fato, foram.”
Para todos?
Devani Reis, por sua vez, ressalta ter encontrado uma falta de conexão entre a realidade proposta no material com a dos usuários do sistema de saúde pública. “O Guia prescreve que você se alimente sempre no mesmo horário, em lugares limpos, com companhia. Quantas pessoas podem ter esse privilégio?”. Ao ser perguntada sobre o maior problema do material, é categórica: “Não se pensou no público-alvo”. Sobre isso, Maria Louzada discorda. Segundo ela, a recomendação do Guia é de que as pessoas busquem se alimentar com regularidade, ou seja, não “belisquem” durante o dia, comam em lugares confortáveis, adequados e limpos e, sempre que possível, em companhia e que isso ainda é um ideal possível para muitos brasileiros. “Acho que boa parte dessa crítica é uma falácia porque muitas das recomendações do Guia foram baseadas na análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares, conduzida pelo IBGE, com dados de 2008 e 2009, que avaliou a alimentação de mais de 30 mil brasileiros.”
“O Guia prescreve que você se alimente sempre no mesmo horário, em lugares limpos, com companhia. Quantas pessoas podem ter esse privilégio? Não se pensou no público-alvo.” Devani Reis
“Acho que boa parte dessa crítica é uma falácia porque muitas das recomendações do Guia foram baseadas na análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares, conduzida pelo IBGE, com dados de 2008 e 2009, que avaliou a alimentação de mais de 30 mil brasileiros.” Maria Laura Louzada
De fato, a pesquisa que Maria Louzada cita demonstra que boa parte da população brasileira ainda baseia sua alimentação em alimentos in natura ou minimamente processados e que a maioria das pessoas de baixa renda também apresenta esse padrão, levando à conclusão de que “a limitação econômica não é um empecilho para esse tipo de alimentação para a maioria das pessoas aqui no Brasil”.
As duas têm opiniões bastante divergentes quanto à eficácia do Guia. Maria Louzada defende que ele teve influência em legislações e em discussões, como a mudança da rotulagem alimentar no Brasil e a atualização das diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), enquanto Devani Reis questiona até mesmo o princípio de que o Guia seja acessível a toda a população. “O Guia diz ser para todos os brasileiros. Pode ser, para todo brasileiro que tenha uma instrução de segundo grau. É necessário entender que se alimentar é muito mais do que ingerir nutrientes. É uma questão financeira e educacional.”
Ainda de acordo com Devani Reis, o Guia encoraja as pessoas a se engajarem na defesa de políticas fiscais que resultem em encarecimento dos alimentos ultraprocessados. Para ela, porém, o cidadão que recebe essa incumbência é aquele a quem foi negado o direito a moradia, educação, saneamento básico, transporte e saúde, entre outros. “Parece-nos uma convocação injusta alguém sem condições imprescindíveis para lutar pelos seus direitos ser chamado a abraçar atos para resoluções de problemas do Estado.”
Mais informações: e-mail devani.salomao@gmail.com, com Devani Salomão Reis; maria.laura.louzada@usp.br, com Maria Laura Louzada
Fonte: Agência USP