por Aurea Caetano
Como podemos nos manter quem somos e ao mesmo tempo mudar, como se dá a tal da relação entre “tradição” e “modernidade”? O que é que faz com que a cada momento nossa identidade possa ser mantida e ao mesmo tempo expandida?
Um dos tipos mais fascinantes de memória é aquela chamada de “prospectiva”. Uma memória de futuro? Sim, quase isso! Memória prospectiva seria a capacidade de descrever como a mente tenta “lembrar o futuro” baseado no que aconteceu no passado. Ou seja, como as vivências de eventos do passado estruturam e organizam nosso aparato mental de forma que ele seja capaz de se organizar para funcionar de forma antecipatória. Quase uma possibilidade de “previsão do futuro”.
Nossa arquitetura neural deve ser compreendida como expressão palpável da nossa história de aprendizado. As primeiras pesquisas em plasticidade neural começaram explorando o impacto de diferentes tipos de ambientes no desenvolvimento do cérebro. Ele não é um órgão estático; muda continuamente em resposta aos desafios do ambiente. Por isso, a arquitetura neural do cérebro como que evidencia ou concretiza o ambiente que o modela.
Sabemos hoje que toda a programação genética responsável pelo desenvolvimento do cérebro humano é “dependente da experiência” e todos os relacionamentos, desde o nascimento ou até antes, na vida intrauterina, vão influenciar a forma de maturação dessa estrutura. Alguns desses circuitos são inatos, isto é, vêm de fábrica, mas são customizados (por assim dizer) a partir da experiência com/no mundo e a partir das necessidades de cada organismo.
Para alcançar a complexidade necessária para o comportamento, os neurônios, unidades básicas de estruturação do cérebro, se organizam em redes neuronais. Uma rede neuronal pode constituir-se de desde apenas alguns neurônios em um animal simples a trilhões de interconexões neuronais em cérebros como os nossos.
O aprendizado ou o relacionamento que estabelecido com o mundo pode refletir-se nas mudanças neuronais de várias maneiras, incluindo mudanças na conectividade entre neurônios existentes e o crescimento de novos neurônios. Todas essas mudanças são expressões de plasticidade, ou da habilidade do sistema nervoso de alterar-se em resposta à experimentação.
O crescimento e a organização do cérebro refletem uma mistura complexa, porém sutil, de genética e influências ambientais. Como modelos, os genes fornecem a organização das estruturas uniformes do cérebro, “o que vem de fábrica”.
Essas estruturas e funções, como a disposição geral do sistema nervoso e dos reflexos básicos, são herdadas pelo nosso DNA e compartilhadas por todos os membros saudáveis de nossa espécie. Este é o aspecto da herança genética tradicionalmente concebida como “natureza” ou aqui também tradição.
Por outro lado, a expressão de muitos genes depende de experiências que provocam a sua transcrição. A genética da transcrição controla aspectos mais sutis da organização cerebral, como os delineamentos das redes neuronais que se desenvolvem mais tarde e que vão responder ao modo como o organismo ou o ser humano se relaciona com o meio ambiente, como este ser está no mundo.
Está aí então, também, a possibilidade de transformação. O cérebro é plástico e, como um órgão central de relacionamento com o mundo, através dele podemos ou não exercer nossa capacidade de transformação ou aqui também exercer a modernidade.
Há, então, aqui também uma delimitação sutil entre natureza e cultura ou tradição e modernidade. Não há certo ou errado, bom ou ruim. Importante pensar sempre em um ser que contempla em seu desenvolvimento uma dinâmica adequada entre essas duas formas de estar no e com o mundo.