por Monica Aiub
Um leitor pergunta, a partir da leitura do texto Filosofia clínica existe devido à falta de verdadeiras amizades (clique aqui e leia)
– Podemos substituir as terapias pela amizade? E, podemos substituir os amigos por uma terapia?
A resposta imediata ao leitor é: depende. Em alguns casos tais substituições são possíveis, em outros não. Mas observemos melhor o prisma a partir do qual tratarei as questões que ele propõe.
Em primeiro lugar, quando afirmo que um dos motivos para o surgimento da filosofia clínica é a ausência de espaço para o diálogo franco, a ausência de amigos com os quais possamos partilhar nosso modo de ser; quando afirmo que penso que a filosofia clínica seria desnecessária se cultivássemos a amizade, a escuta, o diálogo, refiro-me, especificamente, à filosofia clínica, e é sobre esta terapêutica que trato aqui.
Além disso, refiro-me a uma forma de amizade muito específica: aquela que questiona, que provoca, que dialoga, que busca, junto com o outro, o conhecimento. Trato, em especial daqueles que são amigos do saber e amigos do outro simultaneamente.
Assim, diante da primeira questão proposta pelo leitor, “podemos substituir as terapias pela amizade?”, eu diria, ainda, em se tratando de filosofia clínica: não sei.
São muitos os possíveis motivos que levam uma pessoa a buscar auxílio em um consultório de filosofia clínica. Se sua busca for por partilha, por alguém que ouça sem julgar, sem oferecer respostas prontas ou receitas para os problemas, sem tentar encaixá-lo num padrão, talvez um amigo, cuja postura se aproxime disso, substitua o profissional. Contudo, nem sempre é o caso.
Vivemos, cotidianamente, muitos papéis e, entre eles, o do amigo. O que é ser um “verdadeiro” amigo? Difícil responder.
Poderíamos traçar aqui uma lista de características para um bom amigo, mas correríamos o risco de, com isso, criar um padrão que excluísse aqueles que são nossos grandes amigos. Correríamos, também, o risco de criar um padrão que incluísse pessoas que não são nossos amigos. Observe seus amigos. Você poderia dizer que eles têm, todos, as mesmas características, e são essas que fazem com que eles sejam seus amigos? Você conseguiria criar um padrão para aceitar alguém como seu amigo?
Talvez você tenha respondido sim. Mas não é algo necessário. Se respondeu não, isto não significa que você não tenha verdadeiros amigos, nem que não saiba escolhê-los. Quantos de nós possuem amigos completamente diferentes? Certa vez ouvi de um amigo, comentando acerca de outro amigo meu: “Não sei como você pode gostar dele”, referindo-se às diferenças existentes entre eles. E quando perguntei-lhe sobre o significando de sua observação, ele me disse: “Como você pode ser minha amiga e amiga dele ao mesmo tempo, se somos tão diferentes?”.
Afirmo que é possível termos amigos completamente diferentes, alguns até sem nenhuma característica comum, e ainda assim, serem bons e verdadeiros amigos. Entre nossos amigos, alguns nos ouvem, outros não; alguns nos acompanham, outros não; alguns partilham os mesmos interesses, outros não; alguns estão próximos, outros não; alguns são presentes, outros não… O que os torna amigos diz respeito a critérios que cada um de nós estabelece para si.
Há pessoas que consideram amigos aqueles que concordam com tudo o que elas pensam e dizem. Outras pessoas consideram amigos aqueles que ouvem calados. Há ainda aquelas que consideram amigos aqueles que brigam: “Só considero alguém meu amigo após nossa primeira briga”. Para alguns é preciso chorar junto; para outros, rir junto; para outros, ainda, percorrer o mesmo caminho, atingir um grau de profundidade, dividir as superficialidades… Há aqueles para os quais o amigo é aquele com quem se pode contar sempre. São muitos os possíveis critérios, alguns surpreendentes a nós.
Já ocorreu de você procurar um amigo para conversar sobre uma questão sua e ele não ter tempo para ouvi-lo? Isto significa que ele não é um bom amigo? Já ocorreu de procurar um amigo para conversar e ele apresentar soluções ótimas para seus problemas, com um único detalhe de tais soluções serem ótimas para ele e não para você? E já ocorreu de você procurar um amigo para conversar e ele ter questões mais urgentes que as suas, fazendo com que você, diante disso, ao invés de falar sobre suas questões, ouvisse as dele? Já houve o caso de colocar sua forma de pensar para um amigo e ser avaliado, julgado e até cobrado por isso depois? São tantas as possibilidades…
Dentro delas, uma muito específica é a que me referia no texto citado: aquele amigo que se dispõe a pensar junto, a ouvir sem julgar, sem interpretar, sem querer solucionar nossos problemas a partir das necessidades dele. Alguém capaz de acompanhar, de acolher nossas questões, de compreender nossa forma de ser. Se esta for nossa necessidade, e encontrarmos alguém assim, este alguém poderá substituir a partilha em filosofia clínica? Talvez.
Há casos em que basta ter um interlocutor que ouça. Mas há casos em que é preciso mais do que isso. O filósofo clínico, em primeiro lugar, é um bom ouvinte, acolhe as questões que o partilhante (paciente) traz, mas não é somente esse o seu trabalho.
Enquanto o partilhante conta suas questões, sua historicidade, o filósofo clínico coleta dados e constrói um conhecimento sobre o universo singular que é o partilhante. Observa também como são os contextos nos quais o partilhante se insere, vive.
Há instrumentos próprios da filosofia clínica para a leitura dos contextos, dos modos de ser, de viver e de agir da pessoa. Há, ainda, instrumentos para provocar a pessoa a pensar sobre suas questões, para auxiliá-la a encontrar caminhos ou formas para lidar com tais questões.
Um amigo pode nos acolher, nos ouvir, mas nem sempre possui instrumentos para compreender nossas questões e contextos, nosso modo de vida. Nem sempre possui instrumentos para nos auxiliar em nossas reflexões. O amigo pode ver o mundo de uma perspectiva muito diferente da nossa, e não tem, necessariamente, que conseguir olhar o mundo a partir de nossa perspectiva. Outras vezes, o amigo está, exatamente, no mesmo ponto que nós, vendo o mundo e a nós pelo mesmo prisma que nós e, consequentemente, não consegue observar outras formas além daquelas que observamos.
Aqui se traça uma diferença importante entre o amigo e o filósofo clínico: o instrumental, a metodologia de trabalho que o filósofo clínico possui. Contudo, ainda que o amigo possuísse este instrumental, e isto pode ocorrer, não haveria a garantia da interseção permitir que tais instrumentos tivessem uma função terapêutica. Ou seja, é possível que tenhamos um amigo, com formação terapêutica, e ele não possa atuar terapeuticamente conosco, porque o papel que exerce na amizade é outro.
Para algumas pessoas é importantíssimo ter um espaço para colocar suas questões, um espaço “neutro”, ou seja, o lugar onde é possível falar tudo o que se pensa, sente, vive, faz, e não ser julgado por isso. O lugar onde é possível expressar e pensar junto com o outro sobre seus modos de vida, sem necessariamente ter que assumir o compromisso de modificar ou manter seus posicionamentos, tendo liberdade de movimento suficiente para modificar ou não, tudo o que foi posto, no dia seguinte.
Sem esgotar o assunto, pois há vários outros elementos a serem pontuados a partir desta questão, observemos o segundo ponto proposto pelo leitor:
“Podemos substituir os amigos por uma terapia?”.
Novamente, não sei, depende… Por quê?
Depende do grau de partilha que se busca com o amigo. O filósofo clínico talvez não possa atender a todas as necessidades do partilhante diante do papel existencial de amigo. Ele é o “amigo do saber e amigo do outro”? Sim. Mas essa amizade está circunscrita aos limites de sua atuação na clínica e, muitas vezes, precisamos mais do que isto de nossos amigos.
Podemos ter bons amigos e, ainda assim, necessitarmos de um trabalho terapêutico. Podemos, também, ter um excelente terapeuta e, ainda assim, necessitarmos de bons amigos. São papéis diferentes e, em alguns casos, precisam ser vividos separadamente. Em outros casos, podem ser coincidentes.