por Monica Aiub
Há sempre um copo de mar, para um homem navegar…
Os versos do poema A invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, são tema da 29ª Bienal das Artes de São Paulo, com mais de 800 obras, 159 artistas, com seus terreiros – espaços abertos, praças, lugares – espaços especiais para atividades paralelas, com diferentes programações – novamente os versos, agora de Assis Valente “iluminai nossos terreiros” – espaços para cinema, palavra, sons, movimento, corpo, arquitetura…
Mas qual não foi meu espanto quando fui convidada pelas jornalistas Fabíola Cidral e Petria wp_posts, do programa Caminhos Alternativos da rádio CBN (http://cbn.globoradio.globo.com/programas/caminhos-alternativos/CAMINHOS-ALTERNATIVOS.htm), para gravarmos um programa na Bienal, juntamente com o artista plástico Dalton de Lucca. Todos nós visitando pela primeira vez a Bienal, com a perspectiva de um passeio, no qual partilharíamos nossas sensações, impressões, reflexões…
Nas informações iniciais, apenas o tema “Há sempre um copo de mar, para um homem navegar” e a conexão com a questão política, pretendendo-se que cada terreiro, cada espaço, pudesse ser o “copo de mar”, a brecha, a possibilidade de constituição de novas formas de vida. Juntamente com a reflexão inicial, muitos questionamentos instigantes nas partilhas com Dalton, Petria e Fabíola, ainda no caminho. O que é isto que a arte provoca? O que é arte? Esta arte, exposta na bienal, representa nosso tempo? Qual o papel da arte? O que faremos aqui?
E iniciou-se nossa arte, com um gravador nas mãos, Petria e Fabíola foram conversando conosco enquanto passeávamos, navegando à deriva, sem mapas, sem bússolas, sem direções, somente nos movimentando para onde nossas sensações fossem chamadas. Nos dispusemos a sentir e pensar juntos, trazendo conosco os referenciais de vivências e formação de cada um de nós. Uma instigante experiência, que trouxe muitas reflexões.
A percepção clara de que as descrições não eram suficientes para refletir as reverberações provocadas por cada obra; a observação do outro, das reações alheias; as trocas; o lúdico, a diversão livre, sem explicações possíveis, foram a tônica de nosso passeio. Como quem brinca nas ondas do mar, como quem navega à deriva, simplesmente observando cada detalhe sensorial e permitindo as movimentações provocadas pelas experiências do sentir. Dalton relata seu desejo de desenhar, eu relato as provocações ao pensar, Petria e Fabíola animam-se com a ideia de “fazer arte”. Ou seja, cada qual buscando seus veículos de expressão para traduzir, criar algo com o que o contato com a arte provocou.
Dalton provavelmente fez seus desenhos, Petria e Fabíola editaram nosso passeio, criando sua própria “arte” e eu partilho com vocês, leitores, algumas das muitas questões que me surgiram neste inusitado passeio.
Muitas vezes somos chamados a entender e explicar uma obra de arte, avaliando sua qualidade a partir da utilização de uma técnica; outras vezes somos chamados a avaliar uma obra de arte pelos supostos sentimentos e intenções de seu autor; outras, ainda, somos provocados a expor nossos próprios sentimentos e os temos comparados a padrões, a partir dos quais somos avaliados em nossos graus de sensibilidade. Bom gosto, mau gosto. Belo e feio. Padrões determinados a partir de quais critérios? Seria uma questão de hábito? Uma questão cultural? Uma questão biológica, ligada a nossas defesas orgânicas? Como você, leitor, constituiu seu gosto?
Charles Peirce (1939-1914) apresentava a arte como liberdade, a experiência estética como *primeiridade, como contato com a totalidade do universo, como atividade lúdica, que permite o devaneio, mas não permite explicação. Explicar exige observar padrões de regularidade do objeto, e extrair desses uma lei geral. Ao fazê-lo, perdemos esta deriva, este navegar ou devanear tão próprio do fazer e do sentir artísticos.
Obviamente, para compor sua obra o artista necessita técnica, estudo dos materiais, escolha das melhores formas para expressar sua criação ou concepção. E o processo de criação varia de arte para arte, de época para época, de artista a artista, de momento a momento, de estilo a estilo… são muitas as variedades, múltiplas as possibilidades. Como delimitar um critério de escolha?
Talvez isto dependa do modo de ser e de se expressar de cada artista. Alguns escolhem a partir de uma concepção inicial da obra, outros, como relataram grandes artistas, partem de um material e constroem sua obra a partir da manipulação do mesmo, esculpindo, pintando, compondo aquilo que lhes parece já estar contido no material inicial. Que a arte exige técnica para se obter os resultados desejados, não há dúvidas; mas a arte é muito mais do que técnica: somente uma boa, uma excelente técnica é insuficiente para se ter arte. Não se trata também somente de escolher materiais, embora esses sejam de suma importância.
Menos ainda se trata de explicitar, de expor uma subjetividade contida, através de um processo catártico. Isto poderá acontecer coincidentemente com a produção de uma obra de arte, mas não é uma necessidade. E se acontecer, o material ali coletado não servirá para uma terapêutica, embora, muitas vezes, coincidentemente, possa ter um valor artístico.
Também não se trata de estabelecer um sentido fechado, um único significado para uma obra de arte. É possível atribuir um único sentido à arte sem anulá-la, destruí-la? Sendo a obra de arte polissêmica (possui vários significados), está aberta a muitas indefinidas leituras. E me parece residir ai sua riqueza: ser “nosso copo de mar”.
Em nossas partilhas no passeio pela bienal, falamos muito das diferenças entre arte e ciência, e essas possíveis diferenças me remeteram ao texto de Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?. Os autores apresentam arte, ciência e filosofia como três jangadas com as quais enfrentamos o caos, em busca de elementos para a construção de nossos planos de realidade. Assim, apesar da fragilidade das jangadinhas, são elas os nossos instrumentos para a construção dos territórios desterritorializados, ou de nossos terreiros de convívio mútuo. Quais as diferenças entre elas?
A ciência trabalha com as variáveis dos objetos – observa constantes e variáveis e extrai delas leis gerais; a filosofia trabalha com as variações do conceito; e a arte, com as variedades de materiais e formas. Enquanto a ciência explica e a filosofia compreende, a arte reverbera.
Como a criança que brinca com o vento, com as folhas, com as ondas do mar, e se não cria seus mundos nesse brincar, ao menos encontra oásis que lhe permitem recobrar o fôlego para a existência, a arte poderá permitir o brincar com a vida, cumprindo o mesmo papel do brincar.
Mas isto ocorre com todo mundo, e diante de qualquer forma de arte? Não. Para alguns talvez isto possa ocorrer diante de qualquer forma de arte; para outros, somente diante de algumas muito específicas; para outros, nada ocorre. E lembro das muitas possibilidades do exercício da arte, relatadas pelos partilhantes no consultório de filosofia clínica.
Algumas pessoas precisam da arte como um escape, para “esvaziar o sax” – como dizia uma partilhante que tocava saxofone. Em outras palavras, um processo catártico, que alivia as pressões e permite olhar para as questões de outra maneira. Este processo é denominado, em filosofia clínica, esteticidade seletiva.
Outras pessoas necessitam da arte para a constituição de suas formas de vida. A arte, tida por muitos como supérfluo, nesses casos é uma necessidade fundamental. Não se trata somente de um veículo de expressão, mas de uma maneira de tornar-se, de ser o que se é.
Considerando o quanto a sociedade contemporânea tem a arte como um luxo, um artigo supérfluo, para muitos o sofrimento está em ter necessidade e não poder supri-la. Daí a importância dos espaços públicos onde se possa não apenas entrar em contato com obras de arte, mas também aprender a produzi-las.
Minhas sensações na bienal?
Divertida, provocativa, encontrei meu “copo de mar”, e nele muitas e possíveis rotas a serem criadas para navegar à deriva, tendo como guia as sensações; e como construção, a partilha. Há nisto um caráter político, tal como propõe os curadores? Se entendermos política como organização da sociedade e se a concebermos como criação de formas possíveis, talvez nela encontremos uma legítima e genuína política: a construção de nossas formas de vida.
Mas estas foram as minhas impressões, sensações, reflexões… poderíamos dizer que há uma verdade nisso? Há uma verdade ou falsidade no sentir? O que você acha, leitor? Que tal experimentar algumas partilhas assim em ambientes artísticos? Poderá ser, minimamente, inusitado; no mais, divertido e, quem sabe, seja a oportunidade para encontrar seu “copo de mar” e “navegar”.
*Primeiridade, é uma das categorias da fenomenologia do Peirce. O que ele denomina interioridade, que é diferente de subjetividade, é liberdade, possibilidade, e ao mesmo tempo, encontro com a totalidade. Ele associa, diretamente, à arte.
Referências bibliográficas:
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2001.
PEIRCE, C. Collected Papers. Harvard University Press, 1987.