por Aurea Caetano
Falamos aqui há algum tempo sobre o primeiro mandamento do Oráculo de Apolo. Inscrito na entrada do templo em Delfos o “conhece-te a ti mesmo” foi tomado por Sócrates como inspiração para sua filosofia. Tem sido desde então, pedra fundamental na construção da cultura ocidental e da possibilidade de, a partir de um movimento de autorreflexão, poder se conhecer e, portanto, estar no mundo de uma forma mais inteira e verdadeira.
Pois bem, o primeiro episódio da nova série de TV, produzida e veiculada pela HBO, “Westworld”, traz uma ideia genial. A trama que acompanharemos nesta série diz respeito a um espaço de entretenimento habitado por robôs quase humanos. Eles foram fabricados por um criador cujo objetivo é proporcionar uma experiência de imersão total em um mundo imaginário: o “Westworld”.
A série é iniciada a partir do relato de um problema com um dos robôs: ele possui comportamentos anômalos ou não condizentes com sua programação inicial e isso causa distorções no seu funcionamento no mundo. Questionado, “o criador” acaba por confirmar que introduziu uma pequena alteração no código de programação de alguns robôs franqueando ou introduzindo em seu funcionamento a possibilidade de devanear. Ele acredita que, a partir dessa alteração, a experiência dos hóspedes nesse parque temático seria ainda mais real, uma vez que dessa forma os robôs se assemelhariam ainda mais aos humanos.
Assistiremos, então, uma verdadeira saga na qual seremos confrontados com a difícil tarefa de distinguir entre criador e criatura; na qual não saberemos dizer o que é real e o que imaginário ou qual o jogo afinal.
E o que há de tão importante na capacidade de devanear? Vejamos: devanear é a possibilidade de divagar, de ser levado pela imaginação, pelas lembranças e pelos sonhos. Ou seja, é a possibilidade de sair de si mesmo, ou de um funcionamento cartesiano, polarizado, para entrar em um funcionamento simbólico. Ora, não é exatamente essa capacidade que nos define como seres humanos?
Os robôs desse parque temático foram criados com a mais moderna tecnologia, sendo regidos, no entanto, pelas três leis da robótica propostas por Isaac Asimov em seu “Eu, robô”. A primeira delas é a regra fundamental desse parque: nenhum robô pode matar (ou fazer mal) a um ser humano. Faz parte, no entanto, das prerrogativas dos convidados do parque que eles possam ter a experiência de matar e fazer mal a qualquer robô ou anfitrião. Esta é, aliás, uma das possibilidades mais atraentes para os hóspedes, que poderão dessa forma dar vazão a seus impulsos agressivos sem qualquer culpa ou constrangimento.
Os robôs foram programados para desempenhar os papéis a eles designados na narrativa do parque, sem hesitações, dúvidas ou alterações. A introdução da possibilidade de devaneio transforma e modifica esse funcionamento. No momento em que é franqueado a eles o acesso a memórias de experiências anteriores, saem da condição de máquinas, experimentando uma atuação mais próxima à humana. A possibilidade de ser levado pela imaginação, de ter lembranças e sonhos transforma e altera toda a estrutura do funcionamento dos robôs, como se pudesse então ser dado um salto, uma volta sobre si mesmo, inaugurando aí a possibilidade de "conhecer a si mesmo".
É como se esses robôs, pudessem a partir de então entrar em uma operação especial a partir da qual pode ser inaugurado um novo espaço interno e, portanto, também externo. Veremos, a seguir, de forma sutil uma ligeira alteração no tempo da ação e reação desses robôs, mostrando o tênue desenvolvimento de uma interioridade, característica essa essencialmente humana.
Será que tudo isso se sustenta? Como será o desenvolvimento dessa trama? Como caminharão os robôs e como será sua interação com os humanos. O dogma da primeira lei da robótica permanecerá valendo para esses robôs quase humanos? E o que dizer dos instintos selvagens dos visitantes desse parque? Será possível continuar a trabalhar com a distinção entre máquina e humano?