Por que há pessoas que absurdamente optam por se casar com elas mesmas?

por Fátima Fontes

Introdução

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“A vida é um processo de equilíbrio dinâmico, e tudo o que é bom para a vida só o é em dada medida. Uma boa dieta alimentar, financeira e afetiva é aquela que respeita as medidas corretas. A alma humana só se faz visível quando percebemos os excessos e refletimos sobre eles”. (Nilton Bonder, no livro “A Cabala: da comida, do dinheiro da inveja. ‘A pessoa se conhece através de seu copo, seu bolso e sua ira’”. Rio de Janeiro: Imago, 1999, p.286).

Tema: Em busca do equilíbrio perdido: nossos excessos nos separam

Outra vez nos encontramos para pensarmos melhor sobre nós e nossos vínculos, e dessa vez o mote que elegi, dentre os muitos que circularam em minha mente, desde nosso último texto (veja aqui), foi o do equilíbrio perdido.

Não temos a menor dúvida de que viver, em tempos pós-modernos, ou de Sociedade de Hiperconsumo, como nos fala o filósofo francês Gilles Lipovetski, tem sido uma experiência de grandes desafios, perigos e oportunidades.

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Se por um lado, nossa tecnologia, por nós ansiada, desenvolvida e gerenciada nos ‘facilita o viver’, por outro o torna mais complexo, pois nos arremessa no intrincado mundo das ‘compulsões’, ou seja, nos atira no mundo dos excessos.

Comemos muito e de forma ‘artificial’, afinal, queremos imitar nossos ‘desejados’ mundos desenvolvidos, e neles a comida de verdade foi abolida e substituída por comidas rápidas, construídas com produtos residuais dos naturais e saturados de produtos químicos para que ‘pareçam apetitosos’, apesar de, o mais das vezes se encontrar em estado impróprio para consumo.  

Somos o que comemos, o que pensamos e o que fazemos, conta-nos muitas culturas, dentre elas, a sabedoria judaico-cristã e hoje, também de maneira “compulsiva”, trabalhamos muito, para consumirmos cada vez mais, e nos intoxicamos pelo excesso: tornamos-nos ansiosos, tristes, insatisfeitos, queixosos e ávidos pelo novo, seja ele um smartphone ou um novo amor, novo amigo, novo emprego, novo lugar para morar, para passar as férias, e por aí vai…

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Não nos ‘presentificamos’, não vivemos o presente, que é uma dádiva, aliás, no reino do autoengano em que habitamos a noção ontem e amanhã que é tão enfatizada, nada mais é do que o espectro do hoje: ontem foi o hoje que não volta mais e amanhã, é o resultado do que fizermos hoje.

Então agora entra em cena minha proposta ‘detox’ para esse artigo: que vivamos o hoje, e somente ele, e que responsavelmente busquemos nele o equilíbrio, no que traçamos para viver, no que realizamos e no que esperamos. Para tal desafiadora tarefa, proponho que tiremos nossas máscaras de dissimulação: que enfrentemos “nosso eu dissimulado”, e nossos mundos relacionais dissimulados, já que nos habituamos a considerar o “mal e o inferno” sempre no viver do outro. E diante do que identificarmos de sombras em nós, nos propormos a iluminar e cuidar.

Em luta com o ‘narcisismo’ nosso de cada dia

Fiquei muito impactada com um trecho apresentado no último capítulo da novela “A Força do querer”, de autoria da Glória Perez, quando a personagem Cybele se ‘casa com ela mesma’, numa cerimônia pública e diante de convidados ela declara narcisicamente que para “se casar“ não precisa do outro, mas que a partir dali ela está casada com ela mesma.

Meu queixo caiu… Como assim? Não há casamento de uma pessoa só, é patologia mental e social essa enganação de supremacia do eu sobre o nós, não existimos sem o “outro”, e o casar pressupõe a livre escolha, pelo menos deveria ser, de partilhar a vida com alguém. Numa linguagem direta: enlouquecemos mesmo!!!

Mas como nossos folhetins novelísticos, nascem da boa observação de autores e roteiristas antenados com a vida como ela se apresenta, me propus a sair do meu estado catatônico de choque e me pus a pensar: é isso aí Fátima, e caros leitores, de tanto olhar para nosso umbigo, para nossos mundos, para nossos prazeres, para nossas opiniões e todos os nossos “nossos” nos perdemos do “outro”, e casamos com nós mesmos. Infelizmente aquilo é uma pura verdade.

Tendo coragem de olhar de frente no espelho de quem nós realmente somos, veremos que nós verdadeiramente odiamos o diferente, o que pensa, é e age diferente de nós. Seríamos mais honestos e assim teríamos chance de alterar essa lamentável rota que colocamos em curso, se assumíssemos que não amamos, e não admiramos o que é diferente de nós, queremos um mundo “rebanho”, uma “vida de gado”, como cantava muitas décadas atrás o Zé Ramalho, “povo marcado, ê! Povo feliz…”. E a marca é a da grife, é a do partido político, é a das ideias, enfim… é tudo aquilo que é ditado pelos “gurus” que elegemos para nos guiar.

Sendo assim, só conseguimos “gastar” algum tempo com o “igual a nós”, como o fazíamos em nossas adolescências, época em que isso era mais que necessário, uma vez que estávamos construindo nosso mito identitário, precisávamos para isso dos “iguais a nós”, das tribos! Mas fazer isso como adultos e adultos jovens, ou mesmo como pessoas cronologicamente maduras, abre espaço para casamentos de uma pessoa só, porque parece ser isso que realmente vivemos atualmente até quando nos casamos com “o outro”.

Acreditando que outro mundo é possível

Então, seguindo, a minha proposta de entramos na “sala dos espelhos”, e diante de nossa feiura pessoal/relacional, creio sim que possamos alterar esse lamentável estado de quem somos e de como estamos vivendo, por uma busca de equilíbrio e bem-estar conosco e com o outro.

Os seis elementos do bem-estar psicológico

Encanta-me a noção de bem-estar psicológico criada por dois psicólogos norte-americanos Ryff e Keyes, que consideram seis elementos que evidenciam esse bem-estar da alma, que são:

1º)  Autoaceitação: descrita como característica central da saúde mental e que revela, dentre outros aspectos, o elevado nível de autoconhecimento, o bom funcionamento psíquico, relacional e espiritual e a maturidade.

2º) Relacionamento positivo com outras pessoas: apresentado como sentimentos fortalecidos de empatia e afeição pelos seres humanos, como a capacidade de amar, manter vínculos de amizade e de identificação com o outro.

3º) Autonomia: evidenciada pela busca e uso de padrões internos de autoavaliação, pela resistência à aculturação e pela independência da opinião e avaliação externa.

4º) Domínio do ambiente: condição do indivíduo para escolher ou gerar ambientes compatíveis com suas características psíquicas, de participação ativa em seu meio e manejo e controle de ambientes complexos.

5º) Propósito de vida: percepção de que a vida tem um significado, o que respalda a manutenção de objetivos, as intenções e o senso de direção perante a vida.

6º) Crescimento pessoal: explicitado pela necessidade pessoal de crescimento e aprimoramento e pela abertura aos novos desafios e experiências que se apresentem nas várias etapas da vida.

Acredito que se não perdermos de vista a busca por esses elementos em nosso viver, e se formos verdadeiros o suficiente para nos avaliar constantemente e corrigirmos nossos desvios dessa “outra rota” que nos inclui e inclui o outro, estaremos usufruindo de um presente mais genuinamente equilibrado.

E para terminar…

Tomara que saiamos dessa leitura, mais sensibilizados para nos avaliarmos e aos nossos “rumos em busca do equilíbrio” pessoal e relacional.

E que nos utilizemos de recursos que somam força à busca do equilíbrio como a contemplação, a gratidão, a compaixão, a bondade, a serenidade e a celebração de sermos quem somos e de podermos aprender a sermos melhores para nós mesmos e para o “outro” com quem necessariamente teremos de viver.

E agregando a essa busca de equilíbrio e bem-estar a arte, reforçamos nossa proposta de trilhar um novo caminho. O músico Lenine, que muito aprecio, criou uma canção que foi utilizada na novela que aqui citei, e que se intitula: “Simples assim”… desejo que ela embale nossa busca por uma vida melhor.

Simples Assim

Lenine

Compositor: Lenine, Dudu Falcão

Do alto da arrogância qualquer homem
Se imagina muito mais do que consegue ser
É que vendo lá de cima, ilusão que lhe domina
Diz que pode muito antes de querer
Querer não é questão, não justifica o fim
Pra quê complicação, é simples assim

Focado no seu mundo qualquer homem
Imagina muito menos do que pode ver
No escuro do seu quarto ignoro o céu lá fora
E fica claro que ele não quer perceber
Viver é uma questão de inicio, meio e fim
Pra quê a solidão, é simples assim

É, eu ando em busca dessa tal simplicidade
É, não deve ser tão complicado assim
É, se eu acredito, é minha verdade
É simples assim
E a vida continua surpreendentemente bela
Mesmo quando nada nos sorri
E a gente ainda insiste em ter alguma confiança
Num futuro que ainda está por vir
Viver é uma paixão do inicio, meio ao fim

Pra quê complicação, é simples assim
É, eu ando em busca dessa tal simplicidade
É, não deve ser tão complicado assim
É, se eu acredito, é minha verdade
Eu vivo essa paixão do inicio, meio ao fim
Pra quê a solidão, é simples assim
Eu vivo essa paixão do inicio, meio ao fim
Pra quê complicação, é simples assim