Por Cybele Russi
Mais um ano letivo se inicia, e com ele, muitos sonhos e projetos se renovam. Para os alunos que já freqüentam a escola há algum tempo, é sempre a promessa de um ano melhor, com mais atenção, com mais dedicação e notas melhores. Promessa nem sempre cumprida, diga-se de passagem. Para os que estão iniciando numa escola nova, é a expectativa de novos professores, novos colegas, novas caras, novas cobranças e o medo de não se adaptarem ao novo. Mas para aqueles que estão ingressando pela primeira vez na escola básica, a famosa primeira série do ciclo básico, é um mundo novo, com as expectativas redobradas e o sonho de finalmente aprender a ler e escrever. E é sobre esse sonho/pesadelo que quero falar aqui, porque a primeira série e todo o processo de alfabetização da criança tornam-se para alguns pais e filhos motivo de angústia e desespero, quando deveria ser um momento de alegria e de puro prazer.
Não existe nenhuma lei nem nenhum decreto que determine que a criança deva aprender a ler e a escrever na primeira série do ciclo básico, no entanto, por um consenso social, ficou oficializado que era na primeira série que isto deveria acontecer. Possivelmente, esta obrigatoriedade é ainda herança dos tempos em que a alfabetização era iniciada na primeira série, quando a professora, de fato, ensinava o bê-a-bá, e o que se fazia, de fato, era juntar bê mais a com o auxílio da cartilha, onde havia uma série de frases prontas, sempre seguindo a ordem alfabética.
Na ansiedade de verem seus filhos lendo e escrevendo o mais cedo possível, alguns pais acabam transformando esse momento tão rico e tão difícil para a criança num pesadelo de cobranças, de queixas e de reclamações, que respingam por todos os lados, desde a própria criança até a professora, atingindo a escola, o método de ensino, o material pedagógico, etc, gerando uma angústia que muito atrapalha o processo, que por si já é extremamente difícil para a criança. Então, antes que a ansiedade aflore e que as queixas comecem a pipocar por todos os lados, vamos esclarecer alguns pontos sobre o que, realmente, é aprender a ler e escrever.
O boi bebe e baba e Ivo viu a uva são frases conhecidas de todos nós, mas não têm nenhum significado para nenhum de nós. Escrever o próprio nome com lindas letras treinadas no caderno de caligrafia também nunca assegurou que se pudesse ler um discurso ou entender um manual de instruções. Portanto, ler e escrever não é decorar frases, não é juntar as sílabas nem desenhar letras bonitas.
Com as descobertas da Psicogênese da Língua Escrita, ou melhor, com a descoberta de como se dá o processo de aquisição da língua escrita, muita coisa mudou na concepção do que é alfabetização. A primeira delas é que ler e escrever é um processo de construção interna (assim como todos os processos de aprendizagem humana ocorrem de dentro para fora do sujeito) que começa bem antes de a criança entrar na escola e vai muito além da primeira série. Começa quando ela se dá conta de que existe uma língua que se fala e uma língua que se escreve, e que escrever é transformar a língua falada num código gráfico simbólico, o que exige uma elaboração mental extremamente complexa. Para dominar esse novo código ela precisará de alguns anos.
Mas esse processo é longo e difícil para a criança, pois não é resultado da acumulação de informação sobre sílabas, alfabeto e letras, e sim a transformação das hipóteses que ela constrói em seu esforço para compreender o que é, para quê serve e como funciona a escrita. Sendo uma construção absolutamente pessoal, individual, interna e intransferível, é, portanto, impossível para alguém determinar com precisão em que momento ela acontecerá.
Ao contrário do se pensava até há algum tempo, que escrever era juntar letras e sílabas, e que ser alfabetizado era saber escrever o próprio nome, hoje só é considerado efetivamente alfabetizado o sujeito que:
a) Compreende as funções da língua escrita na sociedade (para quê serve a escrita)
b) Compreende as diferenças entre desenho e língua escrita (grafismo figurativo e grafismo simbólico)
c) Apropriou-se do código lingüístico a ponto de poder usá-lo para comunicar-se através dele
d) Consegue ler e levantar questões diante de um texto
e) Percebe que a escrita é importante na escola porque é importante fora dela
O que se sabe é que crianças que têm mais acesso a diversos portadores de textos (livros, revistas, jornais, gibis, rótulos de embalagens, etc); que convivem mais com situações de leitura (pessoas lendo ao seu redor) e ouvem pessoas lerem para elas, aprendem a ler e escrever com mais rapidez e facilidade. Crianças que convivem em lares de pessoas letradas e que fazem uso constante da escrita, aos dois anos de idade já brincam de escrever e rabiscam o papel dizendo que "estão escrevendo". Isto significa que já compreenderam que existem outras formas de comunicação além da fala, e que uma delas é a escrita. Com o tempo transformarão esses "rabiscos" em escrita de verdade. Mas para isso precisarão de nosso apoio, de nossa compreensão e de nosso encorajamento. Cobranças, queixas e críticas não ajudam ninguém a aprender nada.
Se quisermos que nossos filhos aprendam de verdade, o melhor a fazer é lermos muitas histórias, oferecermos muitos livros de histórias infantis, muitos gibis, muitas revistas e enchermos a casa de lápis de cor e de papel para que possam rabiscar e desenhar à vontade suas próprias idéias. E um dia, quando menos esperamos, no café da manhã eles nos surpreendem lendo Mar-ga-ri-na ou escrevendo num pedaço de papel com uma letra desafiadora e mal equilibrada: u meu pai e legau. Nesse dia, damos a mão à palmatória e dizemos: Muuuuuuuuiiito bemmmmm!!! É tudo o que se deve dizer a quem se esforçou tanto par achegar até aí. Com o tempo eles perceberão que a nossa língua tem muito mais dificuldades do que se possa imaginar. Mas isto é uma outra história que fica para uma outra vez. Por hoje, basta comemorar.