Por que não sou mais filósofa clínica?

Por Monica Aiub

Após vários anos escrevendo para esta coluna como filósofa clínica e abordando muitos assuntos a partir desta perspectiva, escrevo hoje para anunciar que não sou mais filósofa clínica. Não, caro leitor! Não me aposentei, não fechei o consultório, não fechei os cursos de formação, não modifiquei radicalmente meu trabalho, mas modifiquei radicalmente meus posicionamentos.

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O principal motivo desta mudança de posicionamento encontra-se no fato de termos, hoje, diferentes atividades que recebem este nome. O que gera muita confusão. Entre as várias correntes, temos algumas que compreendem o trabalho como técnica, outros como ética, outros ainda como uma prática holística, na qual tudo cabe, etc. Eu a compreendo como filosofia, mas não foi suficiente acrescentar-lhe um “sobrenome”, denominando-a “Filosofia Clínica como exercício do filosofar”, pois comumente tenho meu trabalho confundido com o de outros. Além disso, cada uma dessas vertentes exige um tipo de formação diferente. As exigências vão da graduação específica em filosofia, com a especialização em clínica; passando pela exigência de qualquer graduação; até àquelas que não possuem exigência alguma, caracterizando-se como um curso técnico.

Repertório filosófico

Apesar de ser consenso que um curso de graduação em Filosofia não é suficiente para que alguém seja considerado filósofo, a formação em filosofia nos ensina métodos filosóficos para abordarmos os problemas, para lermos textos e contextos, e nos dá, por menor que seja, um repertório filosófico. Ao final de um curso dessa natureza, estamos prontos – como ouvi de muitos professores e eu mesma disse a muitos alunos – para começar a estudar. Exatamente, caro leitor, aprendemos, socraticamente, o significado da famosa frase “sei que nada sei, de tudo quanto sei”. E como não sei, estou disposta a investigar, a pesquisar, a pensar junto com outros.

Caso o leitor não tivesse essa informação, creio que ficou óbvio que, em minha “escola”, é preciso partir da graduação em Filosofia. Quem estuda filosofia pode, além de se tornar professor da disciplina ou pesquisador na área, atuar orientando pessoas e grupos, ou assessorando empresas (isto conforme a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO). E é neste tipo de orientação que classifico meu trabalho.

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O filósofo não tem respostas

Uma orientação filosófica não é uma “consulta a um oráculo”, o filósofo não tem respostas. Seu papel é questionar, duvidar, provocar a reflexão. E, ainda socraticamente, permitir ao outro a gestação e o parto de suas ideias, sempre de modo dialogado. Mais do que auxiliar uma ideia a vir ao mundo, o trabalho do filósofo era, segundo Platão, examinar se esta ideia poderia ou não ser aceita, o que hoje implica em investigar a verdade de seus conteúdos e a validade de sua forma.

Investigar as razões que temos para pensar como pensamos, sentir como sentimos, viver como vivemos, assim como as demais possibilidades de pensar, sentir e viver existentes e os respectivos motivos para considerarmos algumas formas melhores que as outras. Este é o papel do filósofo: provocar seu interlocutor ao exame de suas questões e da elaboração de seus raciocínios.

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De ouvidos bem abertos  

Este processo exige uma escuta não apenas atenta, mas profunda e reflexiva. Escuta essa que se torna cada vez mais rara em nossos contextos. A própria leitura, como aponta Maryane Wolf no livro “O cérebro no mundo digital”, tem se tornado cada vez mais superficial, permitindo ao leitor apenas um “passar os olhos” no texto, caçando as palavras de seu interesse e as interpretando de acordo com seus objetivos. Não há, nesses casos, compreensão do texto, mas distorção. A mesma coisa tem ocorrido com a escuta. Agimos como se estivéssemos programados para identificar e reagir diante de algumas palavras, sem que, antes, compreendamos o significado delas ao serem pronunciadas.

No artigo intitulado “The Influence of Social Interaction on Intuitions of Objectivity and Subjectivity”, os autores Matthew Fisher, Joshua Knobe, Brent Strickland e Frank C. Keil descrevem a pesquisa que aborda como o estilo discursivo adotado pelos indivíduos modifica seu modo de compreender a questão debatida, apontando para as diferenças encontradas entre pessoas que debatem para aprender e outras que debatem para ganhar a discussão. Segundo os autores, as que debatem para aprender, aprendem com o outro, e saem do debate com mais dúvidas, abertas à pesquisa. As que debatem para ganhar a discussão nada aprendem, mas saem do debate mais certas de suas ideias iniciais (independentemente da verdade ou falsidade da ideia debatida).

Mas como isso se relaciona com o fato de eu não ser mais filósofa clínica? Simples. Algumas das citadas vertentes compreendem o filósofo como uma espécie de “guru”, capaz de saber a respeito das necessidades e dos desejos do outro, sem que este as apresentem. Acatam como papel do filósofo o convencimento – ainda que a partir de processos de alienação – e não a pesquisa. Isto, obviamente, não é filosofia.

Filosofia

Depois de muitos anos defendendo que filosofia clínica é filosofia, diante das consequências que observo ao pensar num mundo regido por “certezas” estabelecidas sem critérios, apenas para vencer a discussão ou para ganhar cliques e curtidas, aceito meu equívoco e declaro em uníssono aos que assim pensam: “A filosofia clínica não é filosofia”. Por isso não sou filósofa clínica, nunca fui, uma vez que minha atividade é filosofia.

Encerrei as atividades do Instituto Interseção – Instituto de Filosofia Clínica de São Paulo e inauguro o Espaço Monica Aiub – Filosofia, Arte e Cultura, onde continuo pensando junto com aqueles que me procuram, a partir da abordagem filosófica, sobre as questões cotidianas. Também ofereço cursos sobre temas da filosofia, da arte e da cultura capazes de propiciar reflexões sobre nosso dia a dia, assim como prossigo com a formação – daqueles que já possuem uma graduação em Filosofia – para a atuação neste trabalho de orientação filosófica.

Meus livros e artigos sobre filosofia clínica descrevem, essencialmente, o meu trabalho, uma vez que compreendi a filosofia clínica como filosofia desde o primeiro momento. Portanto, continuam valendo, mas com o adendo de não abarcarem as práticas hoje denominadas filosofia clínica. Como nomeio minha prática? Orientação filosófica, para estar de acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, sempre lembrando que uma orientação filosófica não indica um caminho, uma resposta, mas provoca a investigar, a refletir sobre os caminhos e respostas possíveis.

Referências:
FISHER, M.; KNOBE, J.; STRICKLAND, B.; KEIL, F. C. (2017). The Influence of Social Interaction on Intuitions of Objectivity and Subjectivity. Cognitive Science 41 (4):1119-1134.
WOLF, M. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.