por Pedro Tornaghi
A primeira lembrança que tenho de uma Páscoa é de minha infância em Itaipava.
Ao acordar, eu e meus irmãos procurávamos ovos de chocolate engenhosamente escondidos pela casa e pelo jardim.
Mais tarde, íamos todos ao Itaipava Country Clube onde nossos pais se esforçavam para fazer o melhor para nós em múltiplas brincadeiras, como corridas com ovo na colher, corridas com sacos envolvendo as pernas e por último, a que todos mais gostávamos: ganhávamos pintinhos e em seguida soltavam dezenas de coelhos de casinhas de madeira em um grande campo de futebol gramado onde corríamos, cerca de 20 crianças, atrás dos cerca de quarenta coelhos.
Quem pegasse algum poderia levá-lo para si. E meus pais eram generosos, não nos deixavam criar os pintos até crescerem porque tínhamos que voltar para o Rio de Janeiro onde morávamos em apartamento, mas, nos deixaram criar um dos coelhos, solto no apartamento, por anos.
Essas experiências eram marcantes e a Páscoa era uma delícia esperada todos os anos. Mas desprovida de maiores significados espirituais para nós. Nunca entendia e nunca explicavam a relação de um coelho ou de ovos de chocolate com a páscoa religiosa. Minha família era extremamente cristã, daquelas que levava a sério a missa. Em lugar nobre da sala em nossa casa havia um oratório, um móvel cheio de santos onde meu pai e minha mãe rezavam todas as noites. E pediam por mim e meus irmãos.
Coelhos são companheiros e caem como uma luva para representar uma religião ligada à era de peixes, fundada teoricamente no amor ao próximo
Meu pai sempre dizia que pedia a Deus que desse jeito em mim, e me orientasse onde ele se sentia falhando: em me fazer acreditar nas mesmas coisas que ele. Em grande parte o rogo parecia nunca funcionar e eu teimava em ter opinião própria, discordante da dele em mais pontos do que ele achava razoável e conveniente. Mas ele respeitava e permitia as diferenças, embora voltasse a pedir todas as noites a seus santos que me afinassem com aquilo que acreditava ser o melhor para mim.
Com tamanha devoção à Igreja, eles se esforçavam para que a Páscoa fosse realmente inesquecível. O faziam com um amor e zelo tocantes. Mas, embora fosse fácil perceber um enorme significado emocional naquelas comemorações, eu nunca entendia a relação entre um ovo e um coelho, uma vez que coelhos não colocavam ovos. E muito menos a relação entre aquela festa de coelhos e ovos pintados de alegria e doçura e o sacrifício de Cristo, tal qual me contavam. Para mim a páscoa era comemoração do martírio de Cristo e não da ressurreição. Nunca via pessoas com cristos ressuscitando em seus pescoços, somente com cruzes. E minhas aulas de catecismos eram mais centradas no fato de que aquele homem havia morrido e sofrido por mim. A ressureição passava quase que despercebida no discurso do padre.
Oras eu perguntava e ficava sem resposta, oras me esforçava para ligar os fatos por mim mesmo, mas era impossível para meus precários neurônios. E ficava me sentindo incapaz. O significado da Páscoa parecia escapar de minhas mãos com a mesma facilidade com que o coelho que criávamos pulava para fora de meus dedos quando brincávamos. E parecia não haver menção a coelhos no evangelho, de onde eles tinham saído? Com que propósito? Perguntei a outras famílias de amigos, mas nenhum outro pai foi feliz em me esclarecer. Me impressionava sempre quantos rituais os adultos eram capazes de repetir sem se perguntar o significado.
Mais tarde, um dia refleti que a Páscoa era comemorada no início da primavera no hemisfério norte, de onde vem nossa cultura. Daí imaginei que coelhos e ovos remetessem à fertilidade, ao novo ciclo de vida que as plantinhas inauguravam a cada novo mês de março e abril, após um inverno rigoroso, onde toda a seiva havia sido guardada em suas raízes, como garantia e meio de sobrevivência ao rigor da estação fria. Custei a entender que essa alegoria da vida brotando poderia também estar ligada à ressurreição do Cristo, após os anos de submissão à força dramática da cruz eclipsando qualquer imagem de ressurreição em minha mente infantil.
Menebuch: coelho gigante e universal, divindade máxima
Ma foi depois de adulto, lendo o Popol-Vuh, o livro sagrado maia que comecei a vislumbrar a universalidade da imagem do coelho. Para eles, Menebuch, um coelho gigante, era a divindade máxima que combateu monstros gigantes no grande dilúvio e restabeleceu a vida como está até os dias de hoje no planeta. Menebuch apareceu na Terra em forma de uma pequena lebre e possibilitou ao homem que vivesse como o faz hoje em dia. Ensinou a ele a destreza e as artes manuais. O deus coelho era considerado pelos maias o único interlocutor entre o mundo do sagrado e o terreno. O Messias por assim dizer. Mais tarde, quando evangelizados, constrangidos a abandonar seus "deuses pagãos" pelo colonizador, os descendentes dos maias passaram a representar Menebuch como Jesus Cristo. Assim como fizeram os afrodescendentes no Brasil ao buscar referenciais da Igreja Católica que representassem e possibilitassem a continuação do culto e adoração de seus orixás.
Ainda segundo os maias, a deusa Lua certo dia, vendo-se em perigo, foi socorrida por um coelho que, salvando-a, salvou o princípio da renovação cíclica da vida, o princípio que rege a continuidade das espécies vegetais, animais e humana. Com isso, eternizou-se como um patrono da fertilidade e entidade ligada à primavera. Especificamente para os maias algonquinos e seus descendentes que ainda habitam a costa oeste norte-americana desde o Canadá até o México, assim como para alguns povos sioux, o coelho possui o segredo da vida elementar.
Mais tarde fui descobrir que para os Egípcios, onde o povo judeu ficou escravizado e de onde a fuga deu a origem à páscoa judaica, o coelho também era detentor dos segredos da origem da vida. Na mitologia egípcia, Osíris é por vezes representado por uma lebre que é despedaçada e atirada no fecundo rio Nilo para garantir que a regeneração periódica não falte para aquele povo. O povo egípcio tinha o Nilo como centro da vida. A relação que outros povos têm entre a primavera e a fertilidade, o egípcio tinha com os ciclos de cheias do rio. Na época do ano em que ele enchia, alargava em quilômetros suas margens. Na estação de baixa das águas, o povo plantava na extensão de terra fertilizada pelo alagamento e corria para colher antes da próxima cheia. Por essa razão, o povo egípcio desenvolveu técnicas revolucionárias de armazenamento de alimentos que permitiram o encaminhamento da humanidade na direção do que hoje em dia se chama civilização urbana. O Nilo era a renovação e fertilidade. E o coelho se misturava ao símbolo da água por lá.
Ainda nos dias de hoje, os camponeses xiitas da Anatólia respeitam a proibição de se alimentar de coelhos por defenderem que o animal é encarnação de Ali, para eles o interlocutor entre Alá e os crentes. Também na China clássica a lebre representava a ideia de morrer para renascer e por isso é representada em imagens da alquimia taoísta sempre preparando a "poção da imortalidade". Não é difícil encontrar relação entre o coelho e o ciclo de renovação e esperança de nova vida, que costuma ser identificada como a razão do coelho representar a Páscoa. Porém, símbolos não fincam raízes por questões racionais, mas orgânicas. Acho que uma das principais razões para o coelho ter "colado" como símbolo da páscoa cristã é sua relação com a delicadeza e a sensibilidade. Coelhos são seres lunares por que dormem durante o dia e saem à noite em pulos e saltos. E sabem, como a lua, aparecer e desaparecer com o silêncio e a eficácia das sombras. Foram identificados com a lua não apenas pelos maias, manchas da lua são vistas como coelhos em diferentes civilizações europeias, asiáticas, africanas ou entre os astecas que dividiam a América do Norte com os maias. E, identificados com a lua, suas representações divinas são sempre descritas como entidades que se impõem pela delicadeza.
Cristo inaugurou a era de Peixes, encerrando a de Áries. Na era de Áries, a espiritualidade esteve sempre ligada ao espírito guerreiro. Gregos, persas, indianos e povos nórdicos foram invadidos e dominados por Arianos vindos das estepes russas, que trouxeram consigo uma mitologia repleta de heróis guerreiros. Os profetas dessas civilizações vinham sempre das castas guerreiras. Cristo vem ao mundo para inaugurar uma religião baseada na delicadeza, no amor matizado de gentileza, no perdão, em uma maneira feminina de se relacionar com a espiritualidade. Muito diferente do bélico Odim "deus dos deuses" nórdicos, muito diferente do indiano Krishna, um general que não hesita em aconselhar seu discípulo a mergulhar em uma guerra sangrenta e não parar com o banho de sangue até que o poder da Índia esteja em suas mãos e seus primos mortos; em um raciocínio ético oposto ao do profeta de "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" ou de "Dê a outra face ao inimigo". Muito diferente da crença imperialista dos aqueus na Grécia, ou de Dario e Xerxes na Pérsia.
Coelho: animal delicado e grupal
Enquanto os deuses bélicos das civilizações de cultura ariana eram heróis solitários que impunham justiça e ordem pela força, o coelho surge como um animal delicado e grupal, que considera o outro como igual. Segundo Gilbert Durand, "Para os negros da África e da América, assim como para alguns índios, a Lua é a lebre, animal herói e mártir, cuja ambiência simbólica deve ser associada ao cordeiro cristão, animal doce e inofensivo, emblema do Messias lunar, do filho em oposição ao guerreiro solitário". Coelhos são companheiros e caem como uma luva para representar uma religião ligada à era de peixes, fundada teoricamente no amor ao próximo e na democratização do divino.