Por que o que você pensa sobre a pandemia é irrelevante?

 Se há uma crise que está sendo acelerada pelo advento da pandemia do Covid 19, certamente é aquela que ronda a democracia. Não se trata de uma crise criada pela pandemia, mas aguçada por ela. O longo conflito que tem enfraquecido a democracia é o que se estabelece entre ela e a ciência.

Não se trata de nada obscuro ou de difícil apreensão. De um lado, a democracia exige um debate em que os envolvidos não possuem nenhum tipo de privilégio, de tal forma que cada opinião vale tanto quanto qualquer outra. Nela há uma condição de equidistância de todos os participantes com relação a um centro hipotético do poder. Cada um pode tanto quanto qualquer outro, cada um vale tanto quanto qualquer outro. Existe, nessa situação, uma espécie de despersonalização dos atores sociais, já que não importa quem diz o quê ou propõe o quê. Importa o que é dito ou proposto em um ambiente semelhante ao vácuo.

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Para a ciência uma opinião é algo destituído de valor ou possui um valor muito pequeno diante da obediência aos parâmetros usados para se demonstrar a verdade. Essa última possui uma diferença qualitativa com relação à mera opinião. E não é raro que essa superioridade da verdade seja transferida de maneira sutil para quem a enuncia. Daí termos a figura do cientista na sociedade contemporânea como um oráculo que enuncia verdades a partir de um pedestal. Para verificar isso, basta constatar a presença desse personagem nos processos de convencimento de consumidores dos mais disparatados produtos. Nada parece vender tão bem como aquilo que se faz acompanhar de um jaleco branco.

Onde mais a figura do cientista se destaca?

Mas não é apenas na propaganda que a figura do cientista se destaca. Praticamente não há uma área da nossa existência que não requeira hoje os preceitos de um especialista. E esse último não emite somente opiniões sobre como viver, como se relacionar, como educar filhos, como criar pets etc. Ele emite verdades ou, na pior das hipóteses, afirmações que valem muito mais do que as nossas opiniões cotidianas sobre esses mesmos assuntos. Afinal, o que ele afirma é revestido da aura da cientificidade.

Por que o que você pensa sobre a pandemia é irrelevante?

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O conflito parece ser óbvio: à medida que se lança mão de um cientista para resolver um problema, um valor diferente e superior àquele que emana das simples opiniões é mobilizado. O que um cientista afirma vale, por princípio, mais do que a opinião dos leigos sobre o mesmo assunto. Isso supõe que para se chegar à verdade sobre algo não se pode propor uma votação democrática em que cada cidadão eleja – vamos supor que seja esse o assunto – o que fazer diante da pandemia. O que nós todos deveríamos fazer é aquilo que os cientistas especialistas em virologia estão indicando que seja feito. O que cada um pensa que deveria fazer é irrelevante nesse momento. Seria um sinal de estupidez arriscar vidas humanas para enveredar por uma direção diferente daquela indicada pelos especialistas em saúde.



Pandemia: todas as formas de conhecimento sofrem desgaste

Claro que não me refiro somente à perda de prestígio da opinião de cada um de nós. Me refiro também ao visível desgaste social daquelas formas de conhecimento que nesse momento estão sendo suplantadas pelas soluções científicas para a pandemia. Os conhecimentos tradicionais acerca da saúde, as religiões, os curandeiros, as benzedeiras, os garrafeiros e todas as formas de abordagens comunitárias relativas à saúde humana.

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De certa forma, a situação atual agrava a crise entre uma forma de conhecimento que pretende se colocar em uma posição de destaque social – a ciência – e demanda pela igualdade do valor das opiniões dos cidadãos comuns. Nesse sentido, o sucesso relativo da ciência em minimizar os danos provocados pelo Covid contribui para o enfraquecimento da opinião que nós temos sobre qualquer coisa. Se trata de que enfraquecimento da dimensão política de nossas vidas, daquela dimensão em que supomos certa igualdade entre pessoas diferentes está sendo corroída pela intensificação do valor da verdade científica.

Democracia e verdade não sentam-se à mesma mesa 

Platão já havia demonstrado que a democracia e a verdade não poderiam sentar-se à mesma mesa para uma refeição amigável. Tudo indica que está chegando o momento em que uma delas terá que ser expulsa do baile. O Covid parece um leão de chácara pouco amigável…e ele está de olho na democracia!