Por que as relações tornaram-se tão violentas?

 “Você abusou”: compreendendo e lutando contra os abusos e violências nas relações de intimidade.

Introdução 

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“A violência atual não é apenas a das guerras e revoluções que marcaram o século findo, não é apenas a violência descarada e clamorosa dos governantes… É também a violência nas relações interpessoais, em casa, estimulada por uma cultura que ainda enaltece a ‘lei do mais forte’… e enraizada em características individuais e psicológicas tão profundas, que são muitas vezes inconscientes até para os que nela, têm os motores de suas palavras, atitudes e atos.”.  Maria Helena Kühner, no livro: A Violência no Casal – da coação psicológica à agressão física. Autora: Marie-France Hirigoyen. RJ: Bertrand Brasil, 2006. Prefácio introdutório.

Tive o privilégio, entre o final de agosto e início de setembro de 2019, de visitar e conhecer de perto a vida dos Poloneses, sua capacidade de luta e superação, e como diz o lema nacional deles: “Poland never give up”, traduzindo: “A Polônia nunca desiste”, atestei a veracidade disto. Eles foram “dizimados”, em 1 de Setembro de 1939, e em 1 de Setembro de 2019, 80 anos depois, constatei a superação e transformação de um povo que, de fato, nunca desiste.

Pude visitar, o Museu da 2ª Guerra Mundial, em Gdánsk, um impressionante museu de 7 andares, que conta a história da 2ª Guerra em detalhes e de forma chocantemente completa, nos lembrando que a “sombra humana” é capaz de destruir.

 

Nossa querida autora, a psicóloga Fátima Fontes, no Parque Lazienki, em Varsóvia  

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Outro museu que muito me impactou na Polônia, foi o Museu da História Judaica na Polônia: 1.000 anos de história, em Varsóvia, dentro do que um dia foi o “Gueto de Varsóvia”, completamente destruído pelos nazistas. Foi uma viagem no túnel do tempo, proposta de uma maneira que nunca imaginei presenciar, evidenciando que mais importante do que o que fizeram conosco, é o que “fazemos” com o que fizeram conosco.

De volta a São Paulo, me senti estimulada e inspirada a escrever esse texto, sobre as violências que vivemos, não no macrossistema social, e sim no microssistema de nossas relações de intimidade relacional.

Creio ser urgente, reconhecermos a nossa participação e a presença de vínculos complementares de violências em nosso viver com o outro, como caminho de alteração dessa ‘rota de desencontros’, que percebo crescer entre nós, ao longo da história da humanidade e seus vínculos. 

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Como se “disfarçam” abusos e violências no cotidiano?  

Quando acompanhamos a produção teórica e os escritos de sociólogos que estudam a violência, como por exemplo, Hanna Arendt, e ao nos debruçarmos sobre a produção de estudiosos das violências relacionais, como a psiquiatra, psicanalista e terapeuta de família Marie-France Hirigoyen, somos apresentados à complexidade das tramas das violências nas relações humanas.  

Ressalto desses estudos, inicialmente a questão da “invisibilidade” das violências, apoiada também nos estudos do sociólogo italiano Giorgio Agamben, que nos apresenta o termo “banalização da violência”. Pois é, infelizmente, quase ‘naturalizamos’ o sermos indiferentes, o xingar, o esbravejar, o bater, o espancar, o delapidar, o desqualificar e por aí segue uma grande lista de modos de desconsiderar o outro, em nossas relações, agora com esse dado, de quase ‘normalização’, o que, para mim, lhe confere o novo ‘status’ de invisibilidade. 

Entendo, que a pedra angular, para essa forma sutil de violência, seja a ‘legitimação’, em nossas culturas e sociedades do ’poder sobre a vida e os corpos dos mais frágeis’, Sendo assim, se legitima, o bater, o beliscar, o desqualificar filhos, por parte dos pais, o que abre a infeliz trilha da ‘aprendizagem humana’ de filhos que destratam seus pais, inclusive, fisicamente. 

Mas não podemos deixar de fora, a ainda mais sutil e invisível, das violências: ‘a violência psicológica’. E aí, começo pelos pais, outra vez, que coagem seus filhos com chantagens, com falas que os aterrorizam, metem medo (e chamam a isso de ensinar a ‘respeitar’), assombram seu viver e por fim “os docilizam”, ou seja, os convertem em pessoas inseguras, assustadas e ‘obedientes’, sem possibilidade de crítica alguma ao agressor.

  

Jovens desqualificados pelos pais contra-atacam    

Depois, esses mesmos adultos, sairão ao ataque dos ‘jovens atuais’, que são por eles desqualificados, por serem sem crítica, por não terem um sentido para viver, por não imprimirem às suas vidas a força de luta, e culpabilizarão sempre ‘os outros’ por esse estado dos mais jovens: culpa das mídias, influências dos amigos, de ‘outros adultos’ etc . Me pergunto: e com tanta violência praticada sobre eles, dá para eles pensarem, refletirem e agirem? 

Não nos esqueçamos, também da invisível, e não menos violenta ‘negligência’ parental, que parece preferir ‘terceirizar’ os socializadores e guias, do longo e exaustivo processo educacional, preferindo ter ‘gurus’, muitas vezes, sem nenhuma habilitação técnica, que ancoram-se unicamente em ‘seus processos de vida’, mas sabem falar bem, escrever bem, dominam as novas mídias, e chegam a cobrar bem caro, por palestras para um público que está perdendo a capacidade crítica e a ‘coragem de arregaçar as mangas’ e desenvolver uma educação positiva, que cuida, sem desqualificar. 

Quantas violências vividas e praticadas no campo dos cuidados parentais. 

Mas… e sobre as violências relacionais amorosas e de vínculos de amizade? Se somos relacionados com cônjuges ou companheiros, a bom tempo, as violências se instalam com ‘atualizações constantes’, como nossos smartphones e computadores. Senão, vejamos algumas dessas atualizações: já não elogiamos o outro, não qualificamos e agradecemos por suas ‘boas ações’, não celebramos com eles as vitórias e os criticamos sempre e por tudo, não abraçamos, nem amamos mais o ‘corpo do outro’. Aos poucos, a presença do outro vai se tornando indesejável, e o ‘melhor’ momento será o de se estar ‘longe’, física e afetivamente. 

Nas amizades, venho me assustando, também com as atuais formas de ‘brincar entre amigos’, que inclui o ‘divertido e perverso’ jogo de xingar, ser rude, ser mais rude e dar gargalhadas, sobre os ‘vitoriosos’ que agredirão mais, que desqualificarão mais, que usarão mais palavrões. 

Mas ainda somos testemunhas das invejas e intrigas geradas por ditos ‘amigos’ que estão sempre a nos criticar, a nos lembrar daquilo que ainda não fizemos, ou do que ainda não somos, ou do quanto ‘exageramos’ em algo que eles prefeririam em nós, de outra forma, ou mesmo somos ‘invejados’ em nossas conquistas e superações… ou seja, nas relações de violências entre amigos, não somos tratados nem com respeito, nem com apreço. 

Na busca por caminhos de reparação…

E agora vamos à melhor parte: falaremos agora da ‘boa luta’, contra essas ‘guerras às violências relacionais’. 

Segundo a especialista em violência conjugal, Marie-France Hirigoyen, se as pessoas relutam tanto em sair das situações de violência, é porque não é tão simples sairmos dos vínculos de ‘sujeição’. 

Trata-se de uma prolongada e necessária tomada de consciência, que o mais das vezes, exigirá apoio externo, para que se rompam com os ‘abusivos ciclos’ de perversão aos quais nos submetemos, às vezes, por longos anos. 

Infelizmente, a capacidade adaptativa humana, chega a ser sua bênção e sua maldição, pois se levamos décadas de nossas vidas sendo desrespeitados, desqualificados, maltratados e desamados, aos poucos, vamos nos ‘amoldando’ aos sofrimentos causados pelos ciclos de violências, que sempre alternam os momentos de violências com os momentos de certa ternura e carinho. 

Outros modos de se viver e de se relacionar  

Trata-se, pois, de uma necessidade imperiosa: teremos que decretar ‘guerra’ à sujeição, teremos que ‘pagar o preço’ de perder o ‘tempo do carinho’, que sucede ao da violência. Precisaremos nos dizer que há ‘outros’ modos de viver e de se relacionar, onde o eixo que os sustentam são ‘o respeito, a admiração e a qualificação’ de quem somos e do que sentimos. 

Precisaremos ‘reconstruir’ nossas muralhas defensivas, devastadas pelos anos de ‘bombardeios e maus tratos relacionais’. E isso exige, esforço, e muita, muita persistência. 

Para reerguer nossa ‘dignidade perdida’, necessitaremos adotar o lema dos poloneses, devastados por inimigos: não poderemos jamais ‘desistir’ de lutar. 

Teremos que nos lembrar quem somos, e quem desejamos ser, será essencial acordarmos da ‘letargia’ do pós-violência que ‘esmaeceu’, ou por vezes, ‘apagou’ nosso brilho pessoal. 

Ressignificar nossa existência  

E, por derradeiro passo, proponho que acordemos, ou até que ‘criemos’ sonhos e metas que deem sentido ao nosso viver. Que nos auxiliem a ‘ressignificar’ nossa existência. Precisaremos nos transformar na primeira e grande ‘causa’, pela qual viveremos. Afinal, uma vez tendo vivido, sobretudo, em nossas primeiras experiências de vida, em espaços abusivos e desqualificadores, carregaremos o ‘imprinting’ das violências, ora tenderemos a ‘ser os abusadores’, ora nos ‘associaremos aos abusadores’. E contra isso precisaremos lutar, até o fim de nossas vidas. 

E para terminar… 

Uma canção tocou em meus ouvidos, durante toda a construção desse texto, trata-se da canção “Você abusou”, de Antônio Carlos e Jocafi, que bem retratam o caminho aqui proposto, de superação das violências relacionais: é preciso que ‘reconheçamos os abusos e abusadores’, e que possamos fazer novos versos e canções que só falem de amor, de respeito e de qualificação. Assista ao vídeo da canção.