por Roberto Goldkorn
Uma história recorrente: “Eu tenho uma vida maravilhosa. Não me falta nada. Meus pais são seres incríveis, meu marido é um homem bom, trabalhador, e me ama muito, tenho dos filhos ótimos… Nesse momento em que o depoimento se aproxima do seu ápice começo a me preparar para o cavalo de pau invariável do discurso feliz, que começa sempre pelo “mas”. Reteso os músculos, inicio o desmanche do sorriso, e como um corredor à espera do tiro de largada, aguço todos os meus sentidos. “Mas, (os olhos começam a porejar as lágrimas) não consigo ser feliz, sinto, uma amargura dentro do peito, um misto de medo, raiva, dor, culpa…É horrível.”
Não consigo lembrar de quantas vezes ouvi discursos assim ou muito assemelhados. Usei o exemplo no feminino porque estatisticamente as mulheres estão em maioria na minha agenda. Mas também porque os homens além de não disporem dessa sinceridade autofágica, também são melhores que elas no truque do esconde a “sujeira” para baixo do tapete.
No começo sentia-me constrangido com a expectativa de produzir uma resposta para essa angustia indefinida, que ia contra a corrente da lógica. Chegava a brincar com essas pessoas dizendo que estavam chorando de “barriga cheia”, que pelo menos duzentos e cinquenta e quatro mil outras clientes dariam um braço direito para ter tudo aquilo que a sofredora imponderável tinha e que não era suficiente.
Com o tempo fui ficando mais compassionado e menos analista de Bagé, enquanto compreendia melhor a razão desse sofrimento de membro-fantasma. Hoje não posso dizer que tenho a resposta que vale um milhão para esse sofrimento, mas pude desenhar alguns esboços que acredito possam ajudar nesse quebra-cabeça, quebra-coração, quebra-esperança.
Em primeiro lugar podemos perceber que o perfil dessas pessoas é muito padronizado. Em geral são seres sensíveis. E com uma estrutura sentimental/emocional baseada na romantização do sentimento amoroso. Ou seja, elas pararam seu desenvolvimento emocional/sentimental na fase da idealização do amor, das fantasias do príncipe encantado no seu cavalo branco, nos romances de novela. Assim vão viver (salvo raríssimas exceções) um descompasso desequilibrador entre o amor idealizado, tecido em conjunto com o travesseiro molhados de lágrimas de esperanças e a dura (que nunca é tão dura assim) realidade de suas vidas amorosas e familiares.
Muitas vezes essas pessoas tanto elas, quanto eles, ainda têm para agravar-lhes a situação a memória ou a presença ainda pulsante de um “outro” amor que veio num espaço alternativo e que alimenta a fantasia de um amor perfeito, onde os sinos ribombam, e as flores nascem onde seus pés apaixonados pisam. É claro que esses amores “perfeitos” só o são porque são mascarados pela fantasia e pela falta de um teste de realidade e cotidiano para expor-lhes suas fragilidades, e buracos de queijo suíço. Todo verdadeiro amor se assemelha ao “queijo suíço”: quanto mais buracos mais verdadeiro o queijo. Mas o amor idealizado, fantasiado e disfarçado pela fantasia pessoal não tem furos, é perfeito, exceto por um detalhe cruel: não está disponível, não é aplicável à “dura” realidade.
Mas não é só de perfis amorosos adolescentes que vivem essa angústia amorfa. Para quem acredita na visão espiritualista de que vivemos outras vidas (como eu), há outra explicação: os resíduos de uma grande e dolorosa experiência cármica. Não há espaço aqui para desenvolvermos toda a explicação de como esse processo funciona, mas resumidamente é assim: uma grande perda, uma tragédia pessoal (ou coletiva), uma frustração magnificada pela sensibilidade deixam marcas profundas no Inconsciente pessoal que pode vir a ser transmitida para uma futura existência. Num determinado momento as condições da vida atual podem deflagrar esses pacotes de sentimentos que ficaram atrelados aos acontecimentos passados.
É claro que essas emoções densas, amargas criam perplexidades e confusão, pois não vêm a reboque de nenhum acontecimento concreto. Há o ferimento que dói, mas não a faca que fere, há o medo, mas não a assombração, há o sufoco mas não o sufocador. É claro que isso não dura, se esvai com o tempo, mas enquanto está ativo pode causar muito sofrimento e desorientação, além de uma incômoda sensação de inadequação.
Além disso, em alguns casos esse “fogo que arde sem iluminar” pode deixar sequelas antes de se extinguir. Uma cliente acabou embarcando na fantasia do príncipe encantado, largou a família (marido e filhos) para seguir o seu sonho romântico. Não demorou muito para descobrir com dor real que o príncipe era um psicopata de alta periculosidade. Quando conseguiu pular do titanic sentimental e quis voltar para o marido, descobriu que a fila andou. Ficou no limbo viscoso da solidão, da culpa, do arrependimento.
Não existe um xarope universal para curar ou prevenir esse modelo mórbido. Mas tirar um pouco o peso do EU, ajuda. Voltar-se para fora, buscar a inserção no mundo real, dar uma contribuição para melhorar esse mundo real, ajuda. Um fator comum entre as pessoas com essa síndrome, é o famoso “tudo eu”. O “mundo sou eu”, só a minha felicidade importa, só a minha dor é relevante, só os meus desejos devem ser atendidos na íntegra. Recentemente fui a festa de um amigo numa casa noturna. Ficamos num camarote sobre a pista de dança. Como sempre me divirto olhando as pessoas em baixo.
Minha atenção foi atraída para um canto da pista onde uma moça dançava cheia de energia e com uma alegria contagiante, balançando os braços como os ramos de uma árvores tocada pelo vento forte. Tudo seria mais uma demonstração de euforia se ela não estivesse numa cadeira de rodas. Ela poderia ter ficado em casa lamentando a ausência de suas pernas, sentindo a dor em membros fantasmas, e pensando “tudo eu, tudo eu”. Mas a festa estaria acontecendo lá fora com ou sem as suas pernas.
A dor fantasma é real. Sei que as pessoas sofrem de verdade. Mas isso pode mudar. Qualquer que seja a origem dos seus buracos, leve-os para dançar, ou para uma passeata contra o desmatamento na Amazônia. Tire o peso de cima do seu ego. Pra variar faça alguma coisa por mim.