por Monica Aiub
Continuando o diálogo – clique aqui e leia – com os leitores, recebi a seguinte questão: “A expressão é uma maneira de exposição que pode ser apoiada pelos outros ou até mesmo criticada e julgada como uma loucura. Temos medo de errar, de sermos julgados, buscamos pela aceitação e pela perfeição.
Esse é um dos problemas que provoca o isolamento, trazendo grandes sofrimentos. Por que temos medo de errar e, conseqüentemente, nos isolamos?”
Relembremos parte da definição de solidão do Dicionário de Filosofia de Abbagnano, que serviu como fonte para a reflexão da leitora que enviou a questão: “Em sentido próprio, contudo, a solidão não é isolamento mas antes a busca de formas diferentes e superiores de comunicação: Ela não dispensa as ligações oferecidas pelo ambiente e pela vida cotidiana a não ser em vista de outras ligações com homens do passado e do porvir, com os quais seja possível uma forma nova ou mais fecunda de comunicação. O fato de ela dispensar aqueles liames é pois a tentativa de tornar-se livre deles para tornar-se disponível para outras relações sociais”.
Expor conteúdos distintos do habitual pode trazer solidão
O sentido próprio por ele proposto, busca de formas diferentes e superiores de comunicação, traz uma acepção diversa daquelas tratadas aqui anteriormente, mas não tão distante delas. Expressar a própria voz, falar em próprio nome, colocar-se – independentemente de ser apoiado ou não pelos outros, expor-se com formas e conteúdos distintos do habitual, criar novos e próprios modos de vida: novamente um movimento que exige a solidão, mas uma solidão capaz de criar, capaz de transpor os limites traçados pelo entorno.
Por que nos calamos?
Diferentemente da solidão calada que causa sofrimento, o transbordar, o “esvaziar a taça” – conforme proposto em textos anteriores – é uma solidão comunicativa, é o assumir-se só para tornar-se livre, para encontrar-se disposto à criatividade. Às vezes nos calamos por medo de errar, e isso nos causa sofrimento. Às vezes nos calamos porque o lugar existencial no qual vivemos não nos satisfaz, mas é cômodo e confortável. Questioná-lo é colocar em risco a comodidade, a estabilidade, a garantia de que “tudo permanecerá o mesmo”. Ter essa garantia pode ser importante nas condições em que “tudo está bem”, em que estamos plenamente satisfeitos com nossas formas de vida, com o que nos rodeia, com o que fazemos de nossa existência.
Mas nem sempre é isso o que ocorre. Muitas vezes calamos por medo de perder o que temos (ainda que não estejamos satisfeitos com o que temos), outras vezes por receio do julgamento alheio (ainda que, efetivamente, o outro não esteja muito preocupado com nossas formas de vida). Temos, às vezes, a impressão de vivermos uma história criada por outras pessoas. Por outros seres.
Roteiro alheio
Você já se sentiu assim, como se vivesse um filme, uma ficção, um roteiro produzido por outra pessoa? E nesse contexto, quantas foram as vezes em que você se manteve nessa situação por medo de assumir a responsabilidade por escrever o roteiro de sua própria vida? Muitas perguntas podem habitar nossos pensamentos: “E se não der certo? E se isso me levar a uma situação difícil e irreversível? E se eu não for feliz?”.
Há, inclusive, pessoas que consideram o roteiro já escrito: “eu sou assim, a vida me tornou assim (ou nasci assim) e não há como mudar”; “é meu destino”; “fizeram isso comigo”; “não aprendi a viver de outra maneira”; “depois deste fato (um acontecimento determinado), jamais serei feliz (com variantes como: a vida perdeu o sentido; a alegria de viver me abandonou…)”… Algumas dessas pessoas não consideram a possibilidade da mudança, não acreditam que são capazes de transformar suas vidas, ficam presas a uma situação existencial que afirmam não terem escolhido, mas continuam escolhendo manter tal situação diariamente, embora não assumam – ou se enganem, fingindo para si mesmas não assumir – a responsabilidade por essa escolha.
Não afirmo que todos os casos em que isso ocorra sejam casos de “má-fé”, muitas vezes o que ocorre é ignorância, desconhecimento das potencialidades, cegueira existencial. Somos educados, habituados, a eleger culpados, a encontrar desculpas, a nos esconder de nós mesmos e dos outros. Aprendemos que somos incapazes, incompetentes, fracos, que não é possível lutar contra o que já está estabelecido, como se o processo de estabelecimento fosse da própria natureza, uma natureza previamente determinada, que não suporta modificação. Nos esquecemos que se há algo estabelecido em nossas vidas, ou na sociedade contemporânea, esse algo estabeleceu-se através da criação e da ação humanas.
Nietzsche
“Seja qual for o ponto de vista da filosofia em que hoje tomemos posição: visto a partir de cada posição, o caráter errôneo do mundo em que acreditamos viver é o que de mais seguro e mais firme nosso olho pode captar: encontramos fundamentos e mais fundamentos, em compensação, que poderiam induzir-nos a suposições de que há um princípio enganoso na “essência das coisas”. Quem, porém, faz de nosso próprio pensar, e portanto “do espírito”, o responsável pela falsidade do mundo – uma honrosa saída, adotada por todo consciente ou inconsciente advocatus dei -, quem toma esse mundo, juntamente com espaço, tempo, forma, movimento, como falsamente inferido: este teria pelo menos um bom ensejo para aprender, afinal, a desconfiar do pensar mesmo e de todo pensar: não nos teria ele, até agora, pregado a maior de todas as peças?” (NIETZSCHE. Para além de bem e mal. Cap. 2, § 34).
Se criamos uma forma de vida que nos sufoca, que não nos satisfaz, que nos “rouba” a alegria da vida, por que optamos por sua manutenção? Por que não a modificamos? Por que não construímos uma forma de vida diferente dessa?
Alguns respondem: “Se fosse fácil!”; “Se dependesse de mim…”. De fato, não é fácil dar passos diferentes dos já conhecidos, não é fácil assumir caminhos totalmente novos. E há que se considerar que nem tudo depende de nós. Todavia, muito depende de nós: nossa aceitação, nossas escolhas, nossos posicionamentos, nossas formas de lidar com as dificuldades, nossas interferências no mundo que nos rodeia. E se começássemos pelo que depende de nós?
Então surge a questão proposta pela leitora: mas só eu!? E vou arcar com o ônus da exclusão, da discriminação? Mas será que o que penso faz sentido? E se eu tiver enlouquecido e minhas ações me levarem a gerar um grande problema para mim e para todos os que estão próximos a mim? E se eu provocar um desequilíbrio no universo, uma guerra social?
Obviamente, as grandes tragédias se iniciaram com ações individuais, mas com o assentimento de grandes parcelas do todo social. Não temos garantias do resultado efetivo de nossas ações, de nossas escolhas, mas temos responsabilidade sobre elas. Não temos garantias precisas, mas podemos prever muitos desses resultados. Para isso é necessário conhecer o que se pretende modificar.
Espelho
É interessante observar como é comum nos afastarmos, negarmos, excluirmos aquilo com o que não concordamos, ou aquilo que não nos é familiar. Olhamos para o espelho, não gostamos do que vimos e, imediatamente, jogamos o espelho fora, ou o cobrimos para não ver mais.
E se ao invés disso examinássemos com mais profundidade o que estamos vendo, o que nos incomoda, por que nos incomoda? E se nos dispuséssemos a conhecer o que não nos é familiar? E se buscássemos compreender os motivos para não concordarmos com determinados modos de vida?
Mas nesse exercício, outro tipo de questão surge: o medo acertar. “E se acontecer, exatamente, como eu planejo? E se eu conseguir? E se eu for feliz? E se eu conseguir e não me satisfizer? E se tudo perder o sentido?”…
Medo
Muitos de nós fugimos de nós mesmos. Escondemos nossas perspectivas, nos calamos e embarcamos em devaneios solitários por medo, não somente do julgamento alheio, mas também de nós mesmos. Ocorre, em certos casos, como se buscássemos incessantemente a nós mesmos, mas temêssemos nos encontrar. O que tememos?
“Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar a minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente” (JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico).
Talvez nosso temor esteja em descobrir a necessidade de sermos nós mesmos, de assumirmos a responsabilidade sobre nossas formas de vida, em sermos, necessariamente, livres para abandonarmos a cômoda situação em que nos encontramos – nos desculpando diariamente por sermos como somos – e, definitivamente, sermos os construtores de nós mesmos.