Há ainda uma outra forma, talvez mais grave, pela qual o conhecimento científico afeta nossa liberdade. Vimos, na postagem anterior, como a expansão da ciência reduz proporcionalmente nosso conhecimento, fazendo proliferar um ambiente marcado pela autoridade dos especialistas. O aprofundamento do saber nos deixa sempre na superficialidade ou porque não somos especialistas ou porque somos especialistas somente em algo muito particular. Para todo o resto somos leigos que quase nada sabem.
Para seu desenvolvimento pleno, a ciência lançou mão de um valor cultural produzido pela mundo religioso. Nesse sentido, religião e ciência são colaboradores próximos, em que pese uma visão errada sobre um conflito permanente entre elas. Esse valor religioso que se tornou importante para a ciência é o de uma natureza sem espíritos.
Espíritos e fatos
A grande polêmica do monoteísmo – seu inimigo preferencial por assim dizer – foi a crença de que tudo no mundo estava repleto de deuses, de que os espíritos estavam por toda parte. Para que um único deus ocupe um lugar exclusivo na ordem do universo, é necessário que apenas ele seja aquele que é, ou que ele seja de uma maneira ímpar, sem igual. Então, se ele é espírito, isso deve ser um atributo somente dele. Do outro lado, restou uma natureza sem essa característica, uma natureza que se compõe apenas de fatos.
A ciência só se expandiu no Ocidente tendo como pano de fundo justamente esse valor gerado no ambiente religioso: a natureza, que é seu objeto de estudo, não possui componentes espirituais. Ela é um conjunto de fatos, de elementos materiais que podem ser descritos e completamente compreendidos – justamente porque não ocultam nada além da matéria de que ela é composta. De fato, para a ciência, não há mistérios na natureza. Podemos não conhecê-la adequadamente nesse momento, mas ela não possui dimensões ocultas que poderiam escapar à nossa sagacidade.
De posse desse valor, a ciência pôde propor-se a instrumentalizar a natureza. Ninguém poderia dominar elementos espirituais cujo comportamento é, por definição, incompreensível ou oculto. Ninguém poderia dominar uma vontade diferente da sua. Por isso, a ciência supõe uma natureza dócil e sem vontade própria.
Tecnologia: projeção da vontade humana
Aquilo que chamamos de tecnologia é a filha da ciência na sua relação com essa natureza dócil. Trata-se de projetar no mecanismo natural as intenções humanas. Assim, podemos desviar o curso de um rio, erguer um edifício ou construir celulares porque alteramos a natureza no sentido de tornar nossa vida melhor – segundo nosso critério. A tecnologia consiste nessa projeção da vontade humana sobre uma natureza receptiva e destituída de vontade própria.
O que é escravismo?
A relação em que somente um dos elementos pode expressar sua vontade sobre o outro, chama-se escravismo. Claro que nessa relação se deve levar em consideração as próprias limitações corporais do escravo. Ninguém pode exigir da natureza algo que esteja fora de suas possibilidades, sem prejudicá-la. Mas isso é somente um limite ao qual qualquer amo deveria prestar atenção para não danificar definitivamente a capacidade de produzir resultados de seu servo. Isso é muito diferente de encontrar-se em uma relação em que ambas as partes negociam igualmente a sua atuação. Notamos, assim, que a ciência supõe o direito humano de escravizar a natureza. Na verdade, ela requer esse direito como uma condição para sua forma básica de atuação. Ela supõe o exercício de um domínio sobre o mundo natural. E domínio aqui não é uma figura de linguagem.
Embora o termo escravidão não tenha uma imagem moral muito boa, o fato é que a submissão da natureza trouxe enormes melhorias para a vida humana. Ninguém estaria disposto a abrir mão do conforto do mundo da tecnologia, das condições que são oferecidas à humanidade através do uso intensivo do conhecimento na sua relação de domínio sobre a natureza. Nem mesmo a constatação de que esses bens estão distribuídos de maneira desigual entre os humanos poderia nos levar a concluir pelo seu simples abandono. A tecnologia constitui um mundo em que habitamos e não parece razoável simplesmente nos propormos a abandoná-lo.
No entanto, a questão que deveria nos ocupar parece ser outra. Nós prezamos muito a liberdade e deveríamos estar empenhados em ampliá-la ou garantir sua consolidação. Mas como seria possível ampliar a liberdade humana dentro de um regime escravagista? Se praticamos o escravagismo com relação à natureza, faz algum sentido desejar que nossa liberdade seja ampliada nesse ambiente? O sonho de ampliação ou mesmo de manutenção da liberdade humana não é uma loucura dentro do regime escravagista em que vivemos?
O fato de sermos os senhores na relação de submissão da natureza não deve nos cegar para o fato de que relações de domínio são incompatíveis com a liberdade. Sejamos senhores ou escravos, nesse conjunto de possibilidades não há espaço para uma liberdade autêntica. Nem senhores nem escravos podem ser livres.