Parece que a solidão atual é o desenlace da valorização intensa da pessoa interior que julgo haver em mim mesmo
Nosso conhecimento sobre a relação entre os valores predominantes em uma época e as patologias que acometem as pessoas desse mesmo tempo ainda é muito escasso. Em função disso, parece arriscado demais dizer quais seriam os problemas que afligem as pessoas com mais intensidade no Século XXI. Mesmo assim, vou me arriscar. Como não sou um cientista, me reservo o direito profissional de trabalhar na fronteira entre o que os fatos mostram e a mais pura sugestão da invenção poética.
Vivemos o desenlace de um grande processo cultural que mergulha suas raízes em um passado muito remoto e lança seus galhos para frente, em direção a um futuro ainda sem uma direção precisa. Parte do presente é o amadurecimento de alterações de valores realizadas há muito tempo atrás e um dos fatores mais importantes diz respeito à maneira como nos situamos no mundo.
Antigamente nos compreendíamos como partes de uma totalidade mais ampla, de uma cadeia de eventos que extrapolava as dimensões imediatas da vida de cada um. Assim, explicávamos o significado de nossas existências ancorando-o em narrativas nas quais realizávamos um papel específico dentro de um roteiro mais amplo. O que fazíamos se tornava importante porque colaborava com o andamento dessa história geral. Claro que, com isso, nossa responsabilidade pessoal era muito menor porque não éramos, individualmente, os únicos que deveriam fazer tal ou qual ação. O importante é que nossa geração ou algum outro coletivo desse continuidade ao roteiro – poderia ser eu ou você, tanto faz.
Com o processo crescente de individualização mais recente nos tornamos gradualmente mais responsáveis por qualquer coisa, na mesma proporção em que nos desligamos daqueles roteiros mais gerais. Então, se hoje é verdade que o significado do que fazemos depende exclusivamente de nós mesmo – e não de um coletivo – também é verdade que tudo se exaure na dimensão individual. Então, cada vez mais lançamos mão de qualquer coisa fora de nós mesmos. Cada vez mais, o significado vai se reduzindo aos eventos de nossa existência individual.
Não podemos nos admirar, portanto, que a solidãoseja e venha a ser cada vez mais um problema de nossa época. Isso não significa que somos menos capazes de estabelecer relações com os outros. Talvez nunca tenhamos nos preocupado tanto com a empatiacomo agora. O problema é que a dimensão do outro tem sido esvaziada, simplesmente porque o outro não sou eu e as pontes para o outro não são mais experimentadas com intensidade ou valorizadas.
Qualquer que seja esse outro, os deuses, a natureza, outras pessoas diferentes de mim, todos eles se afastam gradualmente na mesma proporção em que me adentro no meu próprio interior. Cada vez mais para dentro também significa cada vez mais distante do exterior. Parece simplesmente que o outro tende a perder importância, a se distanciar de nós. Parece que a solidão atual é o desenlace da valorização intensa da pessoa interior que julgo haver em mim mesmo.
Não parece haver uma maneira de ir em uma direção (para o eu) e na direção oposta (para o outro) ao mesmo tempo. Assim como nos deslocamos para dentro nos afastamos proporcionalmente dos outros. Cada vez que adentramos mais e mais no universo interior – que parece se expandir indefinidamente – mais nos afastamos de tudo o que nos cerca e nos tornamos estranhos ao que antes era nossa casa: a natureza, os outros, os deuses etc.
A civilização da solidão, o conjunto de valores que temos priorizado viver, nos conduzem cada vez mais para perto de cada um e, na mesma proporção, para cada vez mais longe de tudo o que não somos. Todo terreno que ganhamos por um lado, perdemos de outro. Será que podemos crer que efetivamente progredimos?