por Lilian Graziano
Brasil, anos 90. Em uma época em que ter AIDS era o mesmo que receber uma sentença de morte, um rapaz decide doar um rim para retribuir o fato de ter conseguido fugir do destino funesto que sua miserável infância nas ruas parecia lhe garantir. Era a primeira vez na vida que o rapaz se sentia forte o bastante para oferecer sua ajuda a outra pessoa. Faz os testes, submete-se à cirurgia. E porque a vida às vezes pode ser bastante cruel, contrai, nesse processo, o vírus HIV.
EUA, guerra do Vietnã. Bob Shumaker, um então piloto da marinha, está sobrevoando o território inimigo quando tem seu avião abatido. A fim de escapar da morte certa, ejeta-se no último instante. Com seu paraquedas abrindo a somente a poucos metros do chão, Bob quebra a coluna, o que seria o menor dos seus problemas, visto ter sido imediatamente capturado pelo inimigo que lhe manteria preso por longos 8 anos, alguns dos quais em uma das mais cruéis prisões vietnamitas. Bob passa a ser torturado de maneiras impensáveis para a maioria de nós: barras de ferro lhe são enfiadas pela garganta, cordas amarradas em seus membros forçando-os a posições extremas. Como se a tortura não bastasse, Bob é transferido para uma solitária sem janelas, onde passa 3 anos sem ver a luz do sol.
Em cenários onde a revolta e o trauma seriam consequências naturais, esses 2 seres humanos incríveis contrariam o provável. O brasileiro se torna militante da conscientização sobre a AIDS, passa a sua vida a limpo, ressignifica seus relacionamentos e começa a ter uma vida melhor do que tivera antes de contrair o vírus. O americano, por sua vez, passa seus anos de solitária imaginando como seria a casa que construiria se conseguisse sair da prisão. O tempo ocioso lhe permite concluir que seriam necessários 5.227 pregos. Além disso, desenvolve um código no qual consegue se comunicar com prisioneiros de outras celas, os quais não podia ver, a fim de ensinar-lhes (e aprender) outras línguas. Tudo por meio de simples batidas na parede. Quando finalmente consegue sair da prisão, sua esposa relata ter recebido de volta o mesmo marido alegre com o qual se casara.
Além disso, ao serem questionados sobre se voltariam ao passado a fim de eliminarem as experiências traumáticas de suas vidas, caso isso fosse possível, ambos são categóricos em responder que não, pois tais experiências os tornaram seres humanos melhores.
Surpreendente? Não se considerarmos o fato de estarmos falando de pessoas resilientes. Para os pesquisadores da resiliência é comum tanto fazer essa pergunta quanto escutar esse tipo de resposta por parte de seus entrevistados.
Mas, afinal, o que é resiliência?
Originalmente o conceito de resiliência vem da Física, correspondendo à capacidade de um material retornar ao seu estado normal, após acumular energia quando submetido a um processo que o força, sem que este material, no entanto, sofra ruptura.
Partindo desse conceito não é difícil compreendermos por que a Psicologia tomou essa mesma palavra para indicar a capacidade humana de resistir à pressão das situações adversas sem sucumbir a nenhum tipo de dano psicológico. Em linhas gerais, podemos dizer que a resiliência emocional corresponde não apenas à capacidade de superação de problemas, mas sobretudo ao crescimento por meio deles.
Mas por que algumas pessoas são mais resilientes do que outras? Tenho certeza que a resposta a essa pergunta passa por aspectos ligados à personalidade que, justamente por isso, residem boa parte nas diferenças genéticas. Enganam-se, contudo, aqueles que imaginam se tratar de uma característica que não possa ser desenvolvida.
Existem muitos programas que têm por objetivo o desenvolvimento da resiliência. Na universidade da Pennsylvania há o Penn Resiliency Program que, por meio de várias ações distintas, atende um público de alunos com idades que variam de 8 a 22 anos.
Na Austrália, por sua vez, existe iniciativa para promover a resiliência entre professores, chamado Keeping Cool Project, do qual participam pesquisadores da Murdoch University (Western Australia), Curtin University of Technology (Western Australia) and RWTH Aachen University (Alemanha).
Isso sem falar no programa de desenvolvimento de resiliência que Martin Seligman conduz desde 2009 junto ao exército americano, o Comprehensive Soldier Fitness, maior projeto de consultoria do mundo, que atende nada menos do que um milhão de pessoas, entre militares e seus familiares.
Em 2011, quando saíram os primeiros artigos científicos sobre esse trabalho, vimos generais encantados com a possibilidade de ir além no trabalho de promoção da resistência física dos militares. Era possível deixá-los mais resistentes sob o ponto de vista psicológico e isso era de fundamental importância.
Como vemos, há muito o que fazer quando o objetivo é tornar as pessoas mais resilientes. Porém, o mais interessante é a maneira como isso é feito. De fato, um leitor leigo poderia se perguntar sobre como seria possível um exercício capaz de tornar alguém mais resiliente. Além disso, como seria, exatamente, um exercício de resiliência? Pois é. Não seria. Não existem exercícios de resiliência. A resiliência é uma capacidade trabalhada indiretamente.
Emoções e funcionalidade
Todos os programas de resiliência citados trabalham as emoções positivas. Isto porque são elas que tornam o sujeito mais resiliente. Dizendo de outra forma, os pesquisadores descobriram qua a resiliência pode ser uma espécie de "efeito colateral" de uma vida na qual as emoções positivas predominam. Mas ainda que o estabelecimento de uma relação de causalidade entre emoções positivas e resiliência não esteja muito claro, a correlação entre ambas é incontestável.
Em linhas gerais, podemos compreender as emoções positivas como sendo aquelas que são agradáveis de serem sentidas e que provocam a aproximação entre pessoas, tais como a gratidão, o perdão, a alegria, o otimismo etc.
O mais interessante é que o predomínio de tais emoções, além da já discutida relação com a resiliência, também é responsável pela melhoria do desempenho cognitivo, da longevidade, da rede de apoio social e, é claro, dos níveis de felicidade, conforme comprovam diversos estudos em Psicologia Positiva. Devido ao próprio bem-estar que proporcionam, o estudo das emoções positivas e da promoção da felicidade talvez dispensem justificativas.
Contudo, é interessante notarmos que talvez haja uma relação indireta entre felicidade e crescimento pessoal. Se o predomínio de emoções positivas pode nos tornar mais resilientes e a resiliência corresponde à capacidade de não esmorecer diante das dificuldades e mais do que isso, de crescer a partir dos obstáculos, ao sermos felizes nos tornamos, também, seres humanos melhores.
Vale lembrar, no entanto, que talvez seja importante ampliarmos as pesquisas, considerando a chamada segunda onda da Psicologia Positiva na qual as fronteiras entre emoções positivas e negativas se mostram mais tênues. Isso porque é bem possível que a resiliência, conforme a definimos aqui, somente seja possível quando as emoções negativas relacionadas ao evento traumático sejam plenamente vivenciadas durante tal evento.
Não tenho dúvidas de que a permanência nesse tipo de emoção (negativa) é prejudicial, chegando mesmo a ser devastador em alguns casos. Contudo, minha experiência com acompanhamento de sequestros me mostra claramente o quanto a experiência das emoções negativas em uma situação traumática é indispensável, podendo mesmo se configurar numa condição para a postura resiliente. É chegada a hora de abandonarmos expressões maniqueístas tais como positivo e negativo, indo fundo no que chamo de "funcionalidade das emoções". É lá que as coisas se tornam menos óbvias e, também, mais verdadeiras.
Para saber mais:
Graziano, L. (1998). Vítor e sua vitória: A construção da identidade de um militante através da AIDS. Dissertação de Mestrado. Universidade São Marcos, São Paulo.
Jr. Casey, W. G. (2011). Comprehensive Soldier Fitness: A Vision for Psychological Resilience in the U.S. Army. American Psychologist, 66, 1-3.
Reivich, K. & Shatté, A. (2002) The Resilience Factor: 7 essential skills for overcoming life's inevitable obstacles. Ramdom House, New York.
Texto originalmente publicado na revista digital Make it Positive Magazine – baixe o aplicativo em www.makeitpositivemag.com