Não há assunto mais importante neste momento que a pandemia e suas repercussões a nível mundial. Escolho, no entanto, escrever sobre a pandemia dentro de nós, em nossas casas e relações mais íntimas, aquelas com as quais estamos dividindo o “isolamento social”.
Muito tem sido dito acerca das impressionantes mostras de solidariedade que aparecem no mundo todo: música compartilhada nas varandas italianas, ginástica em grupo em rooftops ao redor do mundo, jovens se dispondo a fazer compras para idosos em isolamento, artistas abrindo suas redes sociais e assim compartilhando suas vidas e criatividade tão inspiradoras. Líderes comunitários de grandes favelas tomando para si o cuidado com suas comunidades, uma vez que nossos governos pouco cuidam dessa grande parte da população. Pequenas confecções fabricando, e disponibilizando sem custo, máscaras protetoras; outras fabricando jalecos em TNT; equipe da Escola Politécnica, em SP, desenvolvendo respiradores com custo muito menor do que os utilizados normalmente.
E então, o que é o normal?
Estamos vivendo um período de exceção. Em um piscar de olhos, a vida que tínhamos ou que vivíamos, não existe mais. O mundo mudou e com ele somos obrigados a mudar junto. Não há como resistir. Não há lugar a salvo, não há para onde ir, para onde correr, onde se refugiar. A recomendação, ordem em alguns países, para que a população faça isolamento social nos obriga a uma introspecção. Estamos dentro de casa, dentro de nós mesmos.
O que esse período traz para nós?
Período assustador para muitos de nós, desafiador para outros e bem-vindo para poucos. Não falo aqui dos menos favorecidos, da imensa maioria de brasileiros que não tem, como nós, um espaço adequado para fazer esse isolamento, nem nutrição apropriada, em todos os sentidos, para atravessar este momento. Falo de nós, os privilegiados, que podemos passar por isso com certo conforto. Identificados com a crença de ordem e sentido na vida somos confrontados com o medo, com a pergunta: o que será de nós? O que será de nossas vidas, dos afetos próximos e dos distantes. A pandemia nos aproxima dos sentimentos mais básicos de fragilidade e impotência.
Como lidar de forma construtiva com a impotência e a fragilidade?
Saímos da atitude onipotente de trabalhar para fazer a vida acontecer, segundo nossos objetivos e desejos, e nos vemos agora confrontados com a polaridade oposta.
Como transitar entre esses dois polos? Como lidar com a impotência e fragilidade de forma construtiva e fecunda? Esse o grande desafio que se nos apresenta. Precisamos estar recolhidos para nos resguardar e ao sistema de saúde como um todo de um adoecimento maior, mas precisamos, ao mesmo tempo, acessar nossas fontes criativas para nos manter saudáveis.
Em momentos de exceção somos provocados a funcionar de forma a contemplar ambas as polaridades, ao mesmo tempo. É preciso aceitar de forma cuidadosa e delicada as sensações ruins que nos tomam sem nos identificarmos com elas, ou seja, evitando a paralisação que podem provocar. É preciso manter uma rotina, sem ficar aprisionados na tentativa de replicar um funcionamento normal em tempos que de normal não tem nada.
Ao aceitar os limites impostos pelo confronto com a impotência, podemos ficar livres para cotejar e entrar em contato com os recursos criativos que podem nos ajudar a manter a calma e serenidade tão necessárias. “A cada dia, basta o seu cuidado”. Se pudermos exercer essa máxima bíblica com toda nossa inteireza, poderemos estar mais preparados para suportar os grandes desafios que este momento mundial coloca a cada um de nós.