Escrevo com um gosto amargo na boca. Duas mortes mexeram hoje comigo: do psiquiatra que cedeu espaço para compor e interpretar as mais belas músicas, Aldir Blanc, e do ator e diretor Flávio Migliaccio.
Aldir Blanc
Aldir iluminou nosso coração, trazia poesia e resistência em tempos de ditadura. Foi trilha sonora de muitas histórias de vida, das mais tristes às de alegria sem fim. A gente nunca pensa que um músico renomado e querido como ele não tivesse como recorrer a um serviço de saúde particular, ainda com vagas, no contexto da pandemia que escancarou as cronicamente precárias condições da saúde pública na cidade do Rio de Janeiro.
Flávio Migliaccio
Até o presente momento ficou claro que o talentoso Flávio colocou fim à própria vida. A breve carta revelou dor emocional, desilusão com aspectos da vida, entre eles a própria velhice. Ele não sobreviveu a tempo de fazer desta mensagem uma rica ferramenta de interlocução, que fosse o início de uma longa conversa na qual ele tivesse voz, fosse acolhido e compreendido.
No meio da dor, acompanho ao longe uma amiga com Covid-19, muito lentamente estou a testemunhar sua melhora, envio a ela fiapos de ajuda, eu mesma estou no grupo de risco e não tenho como colocar a mão na massa para cuidar dela, que se recupera tropegamente na solidão do lar.
Cultive a esperança
Para dar conta de tudo, inclusive de perceber a beleza de pássaros cantando na selva urbana onde moro, preciso cultivar a esperança. Imponho a mim que caminhe fiel a certos valores, que não desista perante a adversidade, que me alimente com gratidão dos frutos de meu ofício e do afetivo convívio online com os amigos.
Penso na esperança como um ioiô, ela vai longe, parece que não volta, aí dou um impulso com pulso firme, na direção certa e, voilà, a esperança retorna toda cheia de si. Depende de mim fazer os movimentos que resgatem a esperança, que a tragam de volta ao meu peito. Está difícil, mas lá vou eu puxar de volta meu singelo brinquedo, fundamental em meio ao pandemônio social da pandemia.