Mais uma vez, o tema é a quarentena imposta nesses tempos do coronavírus.
Após mais de dois meses de confinamento domiciliar, em um convívio obrigatório, constante e exclusivo, sob um clima de tensão e preocupação, que já se tornou crônico, a família enfrenta conflitos de ordens diferentes.
Tem-se dito que os filhos, afastados do convívio social, tão fundamental na infância e na adolescência, privados das atividades esportivas e de lazer ao ar livre, mantidos em espaços circunscritos, inseridos em um aprendizado escolar à distância, são verdadeiros heróis. Muitos pediatras, psiquiatras, psicólogos, psicopedagogos e outros profissionais de saúde mental vêm afirmando isso. Porém, vale uma pergunta: seriam eles heróis ou seriam sobreviventes?
Herói possui uma dimensão semidivina
Herói é uma figura modelo, que reúne em si os atributos necessários para superar, de forma excepcional, um determinado problema de enorme dimensão. Para os gregos antigos, o herói tinha uma dimensão semidivina. A inspiração heroica ou o chamado do herói surge a partir de uma problemática imposta pelo ambiente ou a partir de uma situação adversa, cuja superação exija um esforço extraordinário.
As crianças afastadas de suas rotinas, precisaram se adaptar a um contexto muito diferente do que viviam. A maioria ganhou um convívio muito maior com seus pais, nem sempre tão harmonioso, mas real. Pais e filhos têm a oportunidade de se conhecerem mais, pela proximidade física e temporal imposta pela quarentena. Muitos filhos foram solicitados a tarefas domésticas, colaborando na arrumação da casa.
As crianças ficam mais tempo frente às telas
O tempo frente às telas eletrônicas expandiu-se consideravelmente, uma vez que a escola entrou no computador e os amigos são encontrados virtualmente. Parece que, em geral, as crianças conseguiram enfrentar a adversidade, talvez a primeira que lhes coube, e se tornaram bons sobreviventes.
O título de herói, porém não deve ser dado às crianças, mas sim, deve ser dado a muitos pais e mães, que nesse período, em casa, se dividem em múltiplas tarefas. Além das atividades profissionais, além dos serviços domésticos de todos os tipos, se dedicam a cuidar dos filhos, acompanhar suas atividades da vida diária, a ajudar o acesso aos portais da escola, a descobrir com eles como fazer e entregar lições, provas e projetos online. As crianças mais velhas e os adolescentes têm bastante familiaridade e facilidade com os eletrônicos em geral, mas os sistemas online implantados pelas escolas de forma emergencial, nem sempre são de fácil acesso, necessitando a assistência do adulto.
Também, o título de herói deve ser dado a muitos professores e orientadores, que pegos de surpresa, pela necessidade de se adaptarem rapidamente ao ensino online, precisaram de uma dedicação extrema, muitas vezes, para se apropriarem da tecnologia e para inserirem nela os conteúdos escolares, os métodos de avaliação e os meios de acompanhamento a cada aluno. Essa é uma tarefa heroica.
Mas há exceções
Infelizmente, sempre há exceções. Existem pais que apresentam dificuldades para exercer os papéis parentais. Acostumados, talvez, a terceirizar as funções de tomar conta, de educar e de acompanhar seus filhos, se veem frente a uma tarefa exaustiva e muito pouco reforçadora. Obrigados ao convívio constante, não encontram prazer na companhia dos filhos, não conseguem ajudá-los nas atividades da escola e não se encantam com o brincar com eles.
Existem escolas preocupadas demais com conteúdo e que não fizeram as adaptações necessárias às diferentes idades, para que os conteúdos fossem de fato absorvidos e integrados pelas crianças. Tais escolas quando questionadas, repetem apenas que seguem o currículo determinando pelo MEC, enquanto que outras escolas fizeram ajustes racionais e efetivos. Existem professores que, possivelmente estressados, criam um ambiente de pressão e tensão desmedidas na sala de aula virtual, causando um aumento perigoso de ansiedade nos seus alunos.
Efeitos da longa quarentena
Mas essas são as exceções. Em regra, tanto mães e pais quanto professores têm sido verdadeiros heróis. No início da quarentena, a situação era um pouco mais fácil. Havia a tensão, mas o grito de guerra era “vai passar”. Entretanto, a quarentena foi se prolongando, o número de casos da doença aumentando e, com isso, temos o cansaço e o desânimo. São novos componentes para os nossos heróis enfrentarem. Mais do que nunca, nessa fase agora, urge a necessidade de fazer presente a principal característica do herói: a valentia.