A pandemia revela como mudamos nossa relação com a morte

Já me referi em um texto anterior, publicado aqui no Vya Estelar, ao impacto do Covid sobre nossas expectativas (injustificadas) de segurança e de controle sobre mundo que nos cerca. Há ainda outro aspecto que se pode destacar como um efeito colateral da atual pandemia. Todas as análises estatísticas apontam para o descompasso entre o efeito real da síndrome respiratória sobre a população e nossa reação exagerada diante dela. De fato, há doenças mais mortais às quais não damos a menor atenção. Basta verificar os dados sobre a mortalidade da população mundial para perceber que reagimos irracionalmente diante da Covid-19.

Isso parece significar, em primeiro lugar, que somos majoritariamente irracionais. O que não é exatamente uma novidade, principalmente se você lida com seres humanos no dia a dia. Mas indica algo mais: que estamos sendo especialmente afetados pelas circunstâncias produzidas por essa pandemia. Um desses impactos diz respeito ao modo como temos nos relacionado com a morte.

Continua após publicidade

Nenhuma outra época desenvolveu uma relação tão exterior com o fim de nossa existência individual. Em qualquer cultura anterior a morte era datada: cada um tinha uma boa noção de quando iria falecer. O fim das forças vitais era um aviso bastante eloquente da proximidade da morte. Isso permitia realizar um acerto de contas com as demais pessoas, distribuir os bens materiais de acordo com sua vontade, fazer ajustes, corrigir injustiças, pedir perdão, perdoar-se etc. Essa consciência da proximidade do fim da existência nos oferecia a oportunidade de arrumar as coisas de tal maneira que se chegasse a um desfecho aceitável, já que as pessoas tinham uma boa ideia do momento da partida.

Por que não temer a morte

Com o avanço das tecnologias de prolongamento da vida, perdemos essa percepção acerca da morte. Como nunca sabemos quando morreremos, também não projetamos a possibilidade da morte dos demais. De certa forma, a morte foi expurgada para um momento distante, tão longínquo que sequer pode ser levada em consideração. Ela simplesmente abandonou o campo da existência humana – se assim se pode dizer. Nada que diga respeito à morte faz parte da vida. Ela é um lugar nenhum, um momento indefinidamente distante que sempre se afasta, como se fosse um horizonte que foge do observador. Ela não significa e nem pode significar nada porque ocorre fora de nossa possibilidade de compreensão. Trata-se de algo que simplesmente não acontece conosco. Nossa morte só é real para quem sobrevive, mas não para nós que a experimentaremos.

Por que empurramos a morte para debaixo do tapete  

Continua após publicidade

Todos sabemos que morreremos, mas diante da falta de sentido da morte, deixamos isso de lado, como se jamais se tratasse de uma experiência real que um dia teremos. A nossa vida é vivida como se não tivesse fim, ela se prolonga além daquilo que podemos pensar ou sentir, ela é um nada que se oculta atrás do próximo instante e que, dessa maneira, não precisa ser enfrentada por nós. Ela encontra-se além do que somos e podemos ser.

Como nossa relação com a morte se transformou

Ao contrário daquele velho sistema de valores em que a morte era conhecida com antecedência, em que se podia chamar os parentes e pessoas queridas e fazer as devidas despedidas, agora entregamos nossa vida a aparelhos hospitalares instalados em ambientes ascéticos em que ninguém pode entrar. Substituímos a morte cálida pela frieza da companhia das máquinas de sobrevida, mesmo que nem sejamos mais capazes de nos sentirmos vivos. Também substituímos o tempo denso da emoção da partida e dos acertos finais por um tempo matematicamente insignificante, aquele em que alguém vive mais dois ou três meses sem consciência de si, sem sentimentos despertos, um tempo vazio em que a vida é só um nome.

Continua após publicidade

Mas a morte não desistiu de nós como nos desistimos dela. E a Covid-19 é mais um evento que insiste em chamar nossa atenção para esse fato incontornável. Não se trata somente de que a morte não pode ser evitada. Se trata de que o sentido de tudo aquilo que negamos ainda é uma ausência de sentido, um vazio sobre o qual tentamos inutilmente construir algo sólido. Mas a falta de memória ou o esquecimento deliberado não podem ser a base de algo. Se a morte é uma ausência, então se trata de uma ausência que bate silenciosamente à nossa porta – escutemos ou não.