Entenda quando busca pela perfeição se torna doença

por Regina Wielenska

Imaginem moças se arrumando para a balada: tomar banho, fazer escova no cabelo, experimentar roupas, caprichar nos acessórios e maquiagem e, o mais importante, ficarem prontas a tempo de se divertirem muito.

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O que lhes pareceria se uma delas, de tanto trocar roupa, fazer e desfazer o penteado, tudo permeado por muita aflição e sensação de que nada que faça pareça bom o bastante, acabasse por chegar quase ao final da noite, na hora em que a maioria estivesse indo embora? O pior é que seu esforço estético sequer a teria deixado especialmente bela ou elegante.

Lavar verduras para evitar impurezas é fundamental, mas e a pessoa que, de tanto inspecionar, lavar e esfregar cada folha, estragasse as verduras e não pudesse preparar em tempo hábil o resto da refeição?

Os dentistas se esforçam para que as pessoas façam uma escovação regular, acompanhada do fio dental. Problema é quem, de tanto escovar, por mais de meia hora a cada vez, acaba prejudicando dentes e gengiva. Há quem desista de escovar, porque quando começa só interrompe o comportamento de higienização bucal, com muito esforço, uma hora depois. De tanto que evita, os dentes se tornam condomínio de organismos causadores de problemas graves.

Quase todo mundo tem pequenos hábitos, seu jeito próprio de adormecer, de arrumar os objetos, por as coisas em ordem. Tudo bem, desde que a pessoa não se dedique até de madrugada, beirando a exaustão, a colocar chinelos, travesseiros, toalhas, despertador ou outros objetos em arbitrárias posições milimetricamente exatas, as quais apenas seu cérebro será capaz de considerar subjetivamente satisfatórias.

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O leitor mais informado deve estar desconfiado que desta vez eu queira discorrer um pouco sobre o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, uma condição psiquiátrica que atinge por volta de 2% da população mundial. O cantor Roberto Carlos, há poucos anos descobriu-se portador depois de ler uma entrevista com a atriz Luciana Vendramini, outra portadora, e felizmente partilhou com o público o que parece ser sua perseverante e bem-sucedida caminhada em busca de tratamento. Tal atitude serve de alerta a outras pessoas, muitas encapsuladas no medo de parecerem loucas, estranhas e temerosas da rejeição por parte das pessoas com quem convivem.

Registros históricos nos ensinam muito, e lições por vezes dolorosas. O livro O Martelo das Feiticeiras (em uma das edições recebeu outro nome: Kramer, H. e Sprenger, J. – Malleus Malleficarum: Manual da Caça às Bruxas, Editora Três, São Paulo, 194pp, 1976) escrito por volta de 1484 por dois inquisidores, versava sobre identificação de bruxas, desobsessão demoníaca e temas afins. Ocorre que grande parte dos supostos casos nada mais seria, à luz da ciência atual, casos de pessoas com TOC ou outros transtornos neuropsiquiátricos. A ignorância reinante levou portadores de TOC à execração pública, tortura e morte.

Podemos dizer que o TOC é um transtorno democrático: atinge igualmente homens e mulheres, de diferentes idades, níveis sócioeconômicos, graus de instrução, países e regiões que habitam. É mais comum ter início na infância ou adolescência, e perdurar ao longo da vida, com evolução variável (podem ocorrer variações sintomatológicas), caso não seja tratado adequadamente.

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Sabe-se que a predisposição genética e infecção por streptococcus do grupo A beta-hemolítico são alguns dos fatores de risco. Há famílias nas quais se registram vários casos entre parentes consanguíneos, mesmo que esses não se conheçam e não convivam num mesmo ambiente (afastando a hipótese de que o comportamento obsessivo-compulsivo pudesse ser aprendido e mantido por imitação de familiares).

Obsessões são recorrentes pensamentos ou imagens de caráter intrusivo, que o indivíduo reconhece serem produzidas “por sua própria cabeça”, mas cujo conteúdo lhe pareça repulsivo, aflitivo, atemorizante, blasfemo, inquietante ou desconfortável. Em termos de conteúdo vale qualquer coisa: pensar que pode ter atropelado alguém enquanto dirige, sentir-se contaminado por horríveis bactérias por tocar objetos de uso cotidiano, pensar que cometeria atos agressivos ou obscenos contra pessoas queridas, achar que o que fez não está absolutamente completo, perfeito, adequado (será que trancou a porta, fechou o gás, assinou o cheque, calculou direito o troco, etc.), é um sem fim de possibilidades, cujo conteúdo específico dependerá da história de vida de cada pessoa. Por exemplo, um pediatra ateu com TOC não terá obsessões de cunho religioso, mas poderá ser acometido por obsessões de que medicou errado seu jovem paciente, mesmo que na realidade tenha sido preciso e correto nas suas prescrições, como sempre foi.

Compulsões são igualmente difíceis de controlar, caracterizam-se pela imperiosa necessidade de desempenhar ações, geralmente excessivas e insensatas, com finalidade de produzir algum temporário apaziguamento, sensação subjetiva de paz, redução da ansiedade, da insegurança e do medo. Pode ser a necessidade de repassar na memória todos os atos desempenhados minutos atrás, limpar por horas algo que todos já consideram suficientemente limpo (lavar a própria mão faz parte dessa categoria), rezar um determinado número de vezes para se penitenciar por obsessões blasfemas, o céu é o limite quando pensamos na gama existente de obsessões e compulsões típicas do TOC.

Na Idade Média, obsessões sobre a peste negra eram mais prováveis, culturalmente falando, tal como sobre AIDS, câncer e outras doenças propaladas na contemporaneidade ou sobre tuberculose ou gripe espanhola por volta de 1900/1920. Contextos individuais e sócioculturais dão o tom particular às manifestações do TOC, o qual se apresenta com uma estrutura pouco diversificada.

Pode haver obsessão sem compulsão e também seu inverso. O mais usual é a ocorrência simultânea. As obsessões aparecem, desnorteiam o indivíduo por seu conteúdo. Compulsões são então desempenhadas (física ou mentalmente) como forma de neutralizar um suposto perigo, evitar alguma tragédia, trazer a sensação de dever bem cumprido, remover sensações de culpa, trazendo relativa paz de espírito, geralmente por poucos minutos.

O produto final é a escravidão ao ritual de neutralização, a ser desempenhado como forma de lidar com a ansiedade própria dos pensamentos obsessivos. Claro que a qualidade de vida sofre crescentes prejuízos. Tomar banho de três horas, com bucha e sabão, acarreta dermatites de contato, fragiliza a cútis, aumenta o risco de infecções cutâneas, traz despesas enormes com água, produtos de perfumaria e energia elétrica, deixa a pessoa exausta e sem tempo para cuidar do que deveria ser importante.

O TOC pode vir paralelamente a outros transtornos psiquiátricos (transtornos de ansiedade, como o pânico e a agorafobia; de humor, como depressão e transtorno bipolar; de controle do impulso, como jogo patológico, tricotilomania – arrancar pelos da cabeça e de outras partes do corpo, escoriação psicogênica – cutucar a pele em busca de irregularidades, colecionismo, etc.).

Raramente pode-se dizer que o portador de TOC está num estado de surto psicótico, com a presença de delírios ou alucinações. No entanto, o grau de conforto ou desconforto com a ocorrência das próprias obsessões e rituais é fator importante para se prever as chances de um tratamento bem-sucedido. Não há certezas absolutas quando se fala em um fenômeno multifacetado e complexo como o TOC, mas são preocupantes sinais de mau prognóstico:

• tempo longo sem diagnóstico e tratamento,

• pouca ou nenhuma percepção (visão crítica) sobre os próprios sintomas,

• família que facilita a execução de rituais, se sacrifica e evita contrariar o portador quanto às suas demandas obsessivas,

• recusa do portador em fazer uso de medicação e de participar de terapia.

TOC é tema longo e absorvente. Prometo, assim, continuar a escrever a esse respeito na próxima coluna, quando abordarei alguns aspectos do tratamento.