por Monica Aiub
“É possível não ter uma interseção?”. A pergunta feita por um dos participantes do *Café Filosófico Clínico. Esta pergunta, lembrou-me a belíssima descrição de Martin Buber, em Do diálogo e do dialógico, de uma cena na qual ele senta ao lado de um homem no trem. Sem que troquem uma única palavra, estabelece-se a relação Eu-Tu, caracterizada pela simples presença do outro.
No mesmo livro, Buber diferencia os conceitos de comunidade e coletividade. Na coletividade, ficamos ao lado do outro, mas não percebemos o outro como um Tu, não estabelecemos uma relação de reciprocidade. Por sua vez, a comunidade é caracterizada pela existência de relações de reciprocidade que ocorrem quando nos colocamos junto-com-o-outro. O fato de estarmos ao lado de muitas pessoas não implica em estabelecermos relações recíprocas com elas. É possível nos sentirmos solitários em meio à multidão, ou mesmo no seio de um grupo ao qual pertencemos, como família, empresa, escola, e até mesmo em nosso grupo de amigos. Você já se sentiu assim? Ao lado do outro, porém solitário?
Por outro lado, é possível que um desconhecido – alguém de quem nem sabemos o nome, ou nunca vimos anteriormente – possa modificar completamente nossa existência. Você já teve o curso de sua vida modificado por alguém que casualmente viu na rua? Por um olhar? Por um gesto de um desconhecido? Isso já aconteceu por ter lido um livro, assistido um filme ou ouvido uma música composta por alguém que nunca esteve diante de você? Voltemos à pergunta inicial e tentemos esclarecer o conceito de interseção em filosofia clínica.
Conceito de interseção em filosofia clínica
Interseção é uma palavra originária da teoria dos conjuntos de Georg Cantor. Se considerarmos o conjunto A em interseção com o conjunto B, o espaço de interseção é o que há em comum entre A e B, os elementos de interseção são os elementos comuns entre os dois conjuntos. Numa relação, a interseção é o espaço do “entre”, ou seja, o espaço comum, os elementos comuns. Comum aqui não significa igual, o mesmo, mas elementos, espaços através dos quais nos relacionamos com o outro, fragmentos de nossos universos singulares que partilhamos.
Em filosofia clínica, trabalhamos várias possibilidades de interseção. Num primeiro enfoque, consideramos interseção a relação que se estabelece entre o filósofo clínico e o partilhante (paciente).
Desde o primeiro momento da clínica, e às vezes até mesmo antes de seu início, há um “espaço do entre”, ou seja, há elementos partilhados que levam a pessoa a procurar a terapia. Tais elementos podem ser de diferentes naturezas: a indicação de um amigo, um artigo ou livro lido sobre o assunto, uma palestra ou entrevista assistida, entre outros elementos. Isso significa que mesmo antes de um primeiro contato, a interseção pode ser estabelecida.
Por considerarmos a **plasticidade, a constante movimentação existencial de cada pessoa, o “espaço do entre” pode se modificar o tempo inteiro, pode aumentar, diminuir, ser mais ou menos profundo, mais ou menos intenso, dependendo de uma série de fatores em questão. Da mesma forma, a qualificação que utilizamos para as interseções – positivas, negativas, confusas, indefinidas – pode variar, dependendo também de muitos fatores.
Interseção positiva
Nomeamos uma interseção como positiva quando é subjetivamente boa para ambos. Para esclarecer o que isso significa, pense numa relação extremamente importante para você. Considerando tal relação, avalie: você se sente bem diante dela? O outro, com quem se relaciona, também se sente bem? Sentir-se bem, para você, possui o mesmo significado que possui para o outro envolvido nesta relação? O bem-estar ocorre todo o tempo, ou há momentos da relação em que não se sentem bem? Se há, o que acontece em tais momentos que não ocorre o bem-estar? Você consegue identificar uma movimentação na qualidade da interseção no exemplo pensado? Tente descrevê-la.
Pense, agora, numa relação terapêutica. Na medida em que o profissional conhece o universo da pessoa com a qual trabalha, a possibilidade de aprofundar, intensificar as interseções aumenta. Conforme uma linguagem comum começa a se estabelecer, a possibilidade de compreensão se amplia. Ouvi, outro dia, de um partilhante, a seguinte frase: “Fiquei emocionado quando na última consulta você compreendeu o que eu dizia. Pensei que nunca, na minha vida, alguém pudesse compreender o que penso, o que sinto”.
Contudo, nem sempre aprofundar e intensificar provocam o sentir-se bem. Pode ocorrer dessas profundidades gerarem um mal-estar, por motivos vários. Entre os motivos encontra-se, inclusive, o fato de serem abordados pontos de difícil acesso, pontos doloridos na existência da pessoa. Com isso quero afirmar que é possível um bom trabalho terapêutico com interseções de diferentes qualidades, dependendo das necessidades de cada partilhante, em cada momento da terapia.
Sempre cito, para exemplificar, o caso de um partilhante que chegou à clínica afirmando que me procurou para mostrar que eu não valia nada, como todos os profissionais relacionados às questões da saúde. A interseção negativa, provocativa, estabelecida e entoada por ele, possuía uma função muito específica, mais tarde evidenciada pelo próprio partilhante: ele precisava ser afrontado para conseguir se movimentar. Então, sua primeira reação era afrontar, provocar o outro. Mas lidar com as reações alheias diante das provocações tornou-se um exercício muito complexo para ele, principalmente porque em seu entorno as pessoas desistiram de reagir, ignorando suas provocações, o que lhe causava grande sofrimento e estagnação.
O que provoca maiores movimentos para você: interseções positivas ou negativas? Se uma interseção positiva é aquela que promove o bem-estar subjetivo a ambos, a interseção negativa promove o mal-estar a ambos. Haveria alguém capaz de se movimentar justamente pelo fato de se sentir mal? O exemplo do partilhante ilustra bem a situação descrita.
Por outro lado, há pessoas que encontram seu bem-estar justamente em situações de confronto, de provocações, de inquietação, fazendo das brigas, das disputas, uma interseção positiva. Observe que o próprio significado de positivo e negativo não é algo previamente definido. Dado seu caráter subjetivo, a qualificação das interseções é observada a partir dos significados apontados pela pessoa, e sempre acompanhando seus movimentos existenciais.
Uma segunda acepção para interseção é observada na categoria relação (clique aqui e leia). Nela, o filósofo clínico observa com quem ou o que a pessoa estabelece relações. Podemos nos relacionar com pessoas, grupos, instituições, atividades, animais de estimação, objetos, lugares, etc. Tais relações são observadas em suas qualidades e em suas mútuas influências, ou seja, como a pessoa provoca movimentos em seu entorno e como é provocada a mover-se ao estabelecer relações com os elementos que a rodeiam.
Quando o filósofo clínico passa a observar o que cada uma dessas relações provoca no partilhante, ele estuda o tópico da Estrutura de Pensamento (clique aqui e leia) denominado Interseções de Estruturas de Pensamento. É fácil compreender o tópico. Faça uma lista de suas principais relações. Em seguida, observe como você fica quando está em relação com cada pessoa, atividade, grupo, etc. de sua lista. As modificações observadas em você constituem o tópico Interseções de Estruturas de Pensamento.
Obviamente, você deve ter observado que há outros fatores que interferem em tais movimentos, como os contextos, os ambientes, emoções, buscas, visões de mundo, entre muitos outros. É esse complexo, essa malha, essa rede de elementos e suas constantes e mútuas interrelações que o filósofo clínico observa enquanto o partilhante relata suas questões, sua historicidade.
Voltando à questão: é possível não ter interseção?
Não há como responder a questão de forma genérica. Precisaríamos estabelecer com quem, com o quê, em quais contextos, etc. Se considerarmos o primeiro sentido que atribuímos à interseção, especificamente a relação entre filósofo clínico e partilhante, sem interseção não haverá clínica. Se considerarmos o observado na categoria relação, tenderíamos a afirmar que não há interseção nos casos em que não há relações estabelecidas. Quantas pessoas, grupos, atividades existentes no mundo desconhecemos? Se considerarmos o tópico da Estrutura de Pensamento, não há interseção se não somos afetados, movimentados pelas relações.
De modo geral, não apenas é difícil identificar se há ou não uma interseção, como não haveria motivos para fazê-lo. Mas de maneira específica, compreender as formas como estabelecemos nossas relações e o quanto elas influenciam em nossas formas de vida, é um exercício fundamental. Vamos fazê-lo?
*Café Filosófico Clínico (evento mensal realizado em São Paulo) http://www.institutointersecao.com/cafefilo.htm
**Plasticidade: Capacidade de modificação interna de um sistema ou organismo, mediante fatores externos
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Para entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2008.
BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2008.
_____. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CANTOR, G. Fundamentos para una teoria general de conjuntos. Madrid: Critica, 2005.