Interpretar um sonho é um ato pessoal e intransferível

por Aurea Afonso Caetano

“Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”
Willian Shakespeare em “A tempestade”

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Há relatos de sonhos em todas as antigas escrituras, sonhos já eram utilizados com propósitos divinatórios na Grécia antiga. Epidauros, por exemplo, era um local consagrado à cura; doentes procuravam esse complexo em busca de alivio para seus sintomas.

Ao chegar ao templo a pessoa era colocada para dormir, pedia-se que ao acordar ela relatasse o sonho que tivera durante a noite. Esse sonho era interpretado pelo médico-sacerdote e considerado indicador tanto do diagnóstico quanto do remédio necessário à cura do paciente.

O sacerdote, por assim dizer, aviava o sonho do doente; tinha início aí o processo de cura daquela pessoa.

É famoso também o relato bíblico da interpretação dos sonhos do faraó do Egito por José. A profecia contida nesses sonhos, e sua correta interpretação por José, salvou o Egito de um período de vacas magras (vem daí a expressão corriqueira tempo de vacas magras). Para os não familiarizados com o texto: o faraó teve dois sonhos: no primeiro apareciam sete vacas gordas que eram então devoradas por sete vacas muito magras; depois ele sonha com sete lindas espigas de milho das quais brotavam sete espigas muito fracas e queimadas. José disse ao faraó que os dois eram o mesmo sonho e que falavam de um período de sete anos de muita fartura no Egito seguido de um período de sete anos de penúria total. A partir dessa interpretação o faraó, com ajuda de José, consegue, nos sete anos de fartura, estocar alimentos para abastecer o país durante os sete anos de penúria que se seguiram.

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Grandes sonhos, sonhos comuns

Os antigos faziam ainda uma distinção entre os “Grandes Sonhos” e os sonhos comuns ou pessoais. Os primeiros, como os sonhados pelo faraó do Egito, eram um tipo de comunicação especial, falavam de algo maior, algo que atinge toda a comunidade e por isso de importância coletiva. Os outros, como os dos pacientes de Epidauros, são sonhos mais pessoais; dizem respeito a questões importantes de forma mais particular ao indivíduo que sonha.

Sonhos são processos normais de funcionamento cerebral, acontecem todos os dias, várias vezes durante a noite numa fase do sono chamada sono REM (do inglês – rapid eye movement). Muito importantes do ponto de vista fisiológico, experiências com privação de sonhos provocam estados de confusão mental. Sonhamos todas as noites, lembrar ou não dos sonhos é mais uma questão de treino. Segundo Jung, os sonhos são o que são, dizem o que querem dizer, não escondem nada; antes dele Freud em “A interpretação dos sonhos” já dizia que eles são a via régia para o inconsciente.

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Nós e os sonhos somos uma e única matéria: por que interpretá-los

De fato, como já disse Shakespeare, nós e os sonhos somos uma e única matéria. Nossa vida pequenina ou o que chamamos de “eu” é cercada pelo sono ou pelo inconsciente. Levar em conta as “mensagens” do inconsciente, e para isso sonhos são um dos melhores caminhos, é uma das formas de ampliar nossa consciência. Poder entrar em contato com elementos de nosso inconsciente tanto pessoal quanto coletivo, perceber o que não pode ser percebido de outra forma, trazer para a consciência e elaborar outras possibilidades de compreensão das mesmas questões são todas tarefas a que podemos nos propor através do trabalho com os sonhos.

Sonhos são pessoais e intransferíveis

Mas… há um problema: sonhos são também pessoais e intransferíveis. Isto é, os símbolos e imagens que neles aparecem têm um significado especifico para o sonhador. Há símbolos mais universais, mas mesmo esses são carregados de conteúdos particulares e evocam afetos únicos. Propor-se a esse trabalho é tarefa importante: devemos ser capazes de nos abrir para a especificidade e ao mesmo tempo a universalidade dos conteúdos de cada sonho. Sem esquecer a questão básica subjacente a todo nosso trabalho – para quê? Qual o sentido desse conteúdo, desse sintoma, desse símbolo para mim? Diria que nosso trabalho acontece em torno do sentido e o trabalho com os símbolos que surgem nos sonhos (mas não apenas neles) pode nortear nosso caminho.