por Lilian Graziano
Crianças, em geral, são seres “absorventes”. Chame-as de esponjas, aspiradores de pó, buracos-negros ou mata-borrões. Elas tragam o mundo que as cercam, absorvem-no com gosto, lambuzam a cara, sujam as mãos e mantêm-se sempre, acima de tudo, abertas ao novo. Talvez por isso sejam, também, seres flexíveis, dispostos a reconstruir seus castelos repetidas vezes, sempre que a maré teimar em destruí-los.
E da flexibilidade deriva o potencial criativo, que transforma em elmos formidáveis alquebradas caixas de panetone. E do criativo surge o lúdico, o riso solto que, tão perfeitamente, definem o que é um ser-criança.
Para a julgarmos como um ser “puro” é um passo. Seria uma das muitas representações sociais acerca das crianças que, ao longo da história, já foram ignoradas, vistas como adultos mal-acabados e hoje são intensamente valorizadas, talvez pelo seu estereótipo de pureza, mas também por questões da mídia e do mercado consumidor, entre outras razões para tal. Mas prefiro fugir dessa armadilha e classificar a criança apenas como um ser “crédulo”.
E como não sê-lo diante de tamanhos recursos? Uma criança acredita no Coelho da Páscoa, na Fada do Dente, no Monstro do Armário, no elmo de caixa de panetone; e também nos seus pais, no amigo que acabou de fazer brincando na praia, no papai do céu, na abundância da vida.
Indo ao ponto que nos interessa nesta reflexão, o fato é que uma criança não reflete sobre o sentido da vida e, no entanto, poucos adultos conseguem vivê-la tão intensamente como fazem os pequeninos. É quando enxergo uma correlação positiva entre ausência de sentido hoje experimentada pelos adultos e a intensa valorização infantil. Tanto mais a sociedade se entristece (e “adultece”), mais a criança é endeusada, tomada como potencial redentora de um mundo que falhamos ao construir.
A criança, por fim, possui características que a maturidade parece nos roubar. Na maioria das vezes, tornar-se adulto é um processo lento de “endurecimento”, que leva consigo não apenas o que tínhamos de melhor, mas, sobretudo, nossos melhores recursos para lidarmos com a falta de sentido. Talvez seja por isso que, historicamente, nossa sociedade venha valorizando a criança cada vez mais.
Em outras palavras, parece que, inconscientemente, o homem tem caminhado em direção àquilo que seria capaz de salvá-lo da anomia e do desespero: o resgate de sua criança interior.