por Roberto Goldkorn
Quando fui preso pelo regime militar, que tomou o poder em 1964, fui percebendo que precisava construir um personagem para poder sobreviver ao terror que caiu sobre mim.
Mesmo com toda pressão, com os interrogatórios cruéis, a tortura, o clima de inferno dantesco daqueles porões, consegui criar um personagem e não só sobrevivi, como também não delatei ninguém. Praticamente tudo que eu dizia era encenação, a minha aparente fragilidade, meus gritos de dor- quando nos treinos de Jiu-jitsu eu aguentava "sofrimentos" maiores – e a submissão que eu apresentei aos meus captores superiores também era teatral, porque eu os desprezava e os considerava seres inferiores.
Quando ainda com 19 anos sai daquilo, respirei aliviado e uma das camadas desse alívio era a ilusão de que poderia recuperar a minha autenticidade, que se resumia em dizer o que pensava, agir de acordo com minhas crenças, enfim ser quem eu era.
Ao longo dos anos fui descobrindo que ninguém vive sem máscaras, sem mentir, sem adulterar suas mercadorias emocionais – talvez os bêbados por algum tempo. Tecemos um mundo fantasioso, muito próximo ao conceito hindu de maya – a grande ilusão. Os hindus acreditam que tudo o que existe é fruto de um sonho de um deus e sonhamos que estamos acordados dentro desse sonho cósmico.
Ao responder a minha pergunta: Por onde tem andado? Uma antiga conhecida respondeu com um sorriso triste: "Tenho tentado cumprir uma das missões mais difíceis para um ser humano", e antes que perguntasse qual era essa missão, ela concluiu: "Ser eu mesma!"
Todos os dias recebo recomendações de amigos para que não fale de política nas redes sociais, nem embarque em assuntos polêmicos – os que mais gosto; nem chegue perto de temas religiosos- que adoro – etc. Me pedem para que eu pese, meça e filtre cuidadosamente minhas palavras.
Lembro que há cerca de quinze anos escrevi um texto em que criticava a loucura dos fanatismos e usei o termo "xiitas" de forma genérica. Recebi algumas mensagens iradas, entre elas a de um suposto "teólogo" que me acusava de ser "inimigo dos árabes" e me ameaçava: "Vou te entregar aos árabes (sic) e eles vão calar a tua boca!".
Hoje poucas pessoas pensam e são raras as que têm a coragem de expressar o que de fato pensam e suportar as consequências desse ato de desvario.
Vivemos cada vez mais presos a uma teia de aranha que nós mesmos tecemos, onde mentimos uns para os outros, agimos de forma encenada de acordo com um script criado e atualizado à medida das nossas necessidades de sobreviver em sociedade. Criamos personagens com os quais acreditamos que melhor sobreviveremos à "tortura" da vida cotidiana, assim como fiz nos porões da ditadura.
Um ex-conhecido me confidenciou que grampeou os telefones de seus funcionários por desconfianças comerciais. Ele passava os fins de semana ouvindo o que conversavam entre si e o que de fato pensavam dele. Por fim desabou: "Cara, tem de ser forte para ouvir o que as pessoas que aparentam ser seus amigos pensam de fato sobre você. Não aconselho a ninguém fazer isso, é muito doloroso".
Pode ser que estejamos diante da morte da sinceridade, do autêntico. Da mesma forma que a nossa sociedade falsifica mercadorias, desde remédios até água mineral, nós falsificamos sentimentos, crenças, palavras; criamos máscaras que tiramos e colocamos de acordo com a ocasião.
Ouvi um pai do alto de sua sabedoria aconselhar ao filho recém-ingressado no "mercado" sentimental: "Se ela te pegar numa traição, negue, negue e negue sempre. Morra negando".
A mentira, a falsificação sempre existiu, as pessoas cenográficas sempre estiveram por aqui, mas agora o motivo das máscaras se tornou muito mais abrangente e muito mais precoce na sua implantação. A criança da fábula que viu e dedurou o rei nu, dificilmente faria isso na sociedade urbana atual, pois já teria sido devidamente programada para "ver" a linda roupa mágica do rei.
É óbvio que isso tem consequência. Não se pode suprimir ou reprimir impunemente o nosso impulso para o verdadeiro. Viver numa sociedade em que todos mentem e fingem para todos é dolorosamente insuportável para as almas mais sensíveis, a curto prazo, e mesmo para os mais cascas-grossas no longo prazo.
Consequências da sociedade de fachada:
1ª) Uma das consequências que já podemos ver claramente (só precisamos fazer as associações certas) é a epidemia da droga e do alcoolismo. No mundo de névoas da droga e do álcool existe algum alívio ao se suprimir temporariamente o nosso mentiroso de plantão: o Consciente.
2ª) Outra consequência é a corrida pelo poder. Quando se está por cima da carne seca se pode ser quem é, pelo menos exercer o seu lado mais sombrio. Nesse quesito a arma na mão daqueles que foram privados da preferência do poder, é o auge. Com um revólver ou um fuzil na mão o indivíduo pode ser verdadeiro, pode ser exatamente aquilo que ele é- ele está podendo – como diz o velho ditado: quem pode mais chora menos.
3ª) Outra filha dessa sociedade de fachada é a loucura. Nunca antes na história da humanidade houve tanta depressão, tantas manifestações fóbicas, tantas neuroses, tantas crenças no irracional, tanto investimento na face mais abissal da mente humana.
4ª) Nem vou falar do prestígio crescente das religiões, há trinta anos prognosticadas morimbundas pelos futurólogos mais ilustres que anunciavam a era da razão. Abrigadas dentro da verdade restrita das religiões as pessoas nutrem a sensação de poder estar, pelo menos por alguns intantes fugazes, num oásis de verdade superior absolutamente à prova da falsificação mundana.
Porém, onde alguns veem uma crise, outros mais sagazes veem uma oportunidade: um amigo me disse que está criando os Clubes da Verdade, uma versão ampliada do velho "jogo da verdade" onde as pessoas asfixiadas pelas camadas e camadas de máscaras poderiam exercer em segurança e sem consequências suas mais tenebrosas verdades.
Outro pretende criar um jogo do tipo Second Life, onde protegidos por uma identidade (a verdadeira suponho) expressariam seus sentimentos, diriam tudo o que de verdade pensam e agiriam virtualmente como gostariam de agir no mundo real.
Pessoalmente acho tudo isso uma grande bobagem (desculpem-me amigos criativos), pois são recursos do tipo cachaça ou crack, sem a ressaca ou a destruição da droga.
Não existe uma solução para esse mal de siècle das sociedades urbanas, apenas nos sobra a possibilidade de estarmos conscientes disso. Saber que temos máscaras, que as tiramos e colocamos como perucas para uma ocasião especial, já é um feito monumental. Quem ganha a Consciência de que está atuando e por que o faz, está anos-luz da maioria que se olha no espelho e acredita que aquela máscara é sua verdadeira face e que suas falsificações são o que de mais genuíno brota de seu interior.
Porém, uma sábia constatação emerge desse fenômeno: tornamos-nos tortuosos e falsários porque a nossa vida se tornou insuportavelmente complexa e rococó. São tantos pratos para equilibrar, tantas áreas delicadas para respeitar, tantos interesses nos dilaceram exigindo a sua cota de nosso sangue que "caretas" ou "supersinceros" nossa fragilidade fica insustentável – em "carne viva"!
Simplificar a vida, desejar menos, escapar das armadilhas criadas pela modernidade afluente, podem ser possibilidades alvissareiras para uma vida mais "real", mais sadia e mais genuína.