Por Ricardo J.A. Leme
A medicina transformou profundamente a saudável e tranquila relação de outros tempos entre o homem e a morte. Diluída nos contos e rituais religiosos, a morte permeava o cotidiano, o que ainda se pode encontrar entre aqueles de nós ainda saudáveis. Com a atenuação da hegemonia religiosa sobre a questão, o efeito tranquilizador sobre a compreensão da morte e do morrer cedeu espaço ao medo e à necessidade de segurança, pressupostos mórbidos para um rentável mercado em franca expansão, dos seguros e da “segurança”.
Nas palavras de Jézéquel:
“A posição da ciência médica relativamente à saúde é profundamente ambígua: se o objetivo da medicina é defender a vida, a tentação de passar da luta contra as patologias para a luta contra o fenômeno perturbador – morte – é grande: de fato, dar este passo – pretender decidir entre a vida e a morte – faz do médico um demiurgo e um “apóstolo” da imortalidade. Uma das consequências desta ambição é levar as pessoas que acreditam e praticam este “culto” a uma extrema exigência, a um pedido cada vez maior de infalibilidade, natural, da parte de uma entidade divina. É um pouco isto o que se verifica, hoje em dia com o número crescente de pacientes que, por investirem uma fé ilimitada na tecnologia e nos conhecimentos científicos, sentem-se no direito de pedirem contas cada vez mais altas ao poder médico. Mas, na verdade, rapidamente se descobre que se a encenação do poder é tecnicamente perfeita e se o mágico tem um ar extremamente competente (hospitais, indústria farmacêutica, corpo médico executando rituais bem ensaiados) tudo isto não passa, em boa parte, de uma ilusão que tem, aliás, consequências graves, à vista de todos nós: as esperanças são realmente enormes – “este médico é realmente o melhor e esta clínica fantástica”, mas as decepções não ficam atrás. Não se trata de um problema de competência médica, mas sim de crença coletiva.”
Para o filósofo Sêneca, viver é aprender a morrer; e para o leitor, o pensamento do filósofo faz sentido?