Preservando individualidades, salvando vidas

Devo ou não escrever sobre algo que me tocou tão de perto? Essa pergunta está comigo faz alguns dias e o presente texto sinaliza a decisão de compartilhar nesta coluna Comportamento uma forte e recente vivência pessoal.

Estou enlutada. Faz oito dias que perdi uma amiga-irmã, daquelas que a gente conhece 48 anos antes e segue com a amizade pela vida adulta. Mal chegamos na terceira idade e Maria teve sua vida ceifada pela Covid-19. Foi um mês de cuidados intensivos, intubada e sob sedação, num público hospital especializado em doenças infecciosas. Melhor atendimento, impossível. Enquanto a doença se instalou em seu corpo, e foram surgindo sintomas, cheguei a lhe pedir que buscasse ajuda logo, que o quadro clínico poderia se tornar grave rapidamente.

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Meu pedido estava sob influência da morte de outra querida amiga-irmã, dez anos antes. Com um abscesso odontológico tratado apenas paliativamente, ela acabou desenvolvendo uma letal infecção cardíaca. Naquela época vivenciei um sentimento de impotência parecido. A gente pode dar conselhos, argumentar, mostrar evidências científicas, oferecer ajuda operacional para buscar atendimento, alertei para os riscos, mas a pessoa querida é adulta, deve ter sua autonomia respeitada e nem sempre ela concordará com o que lhe dizemos. As razões são muitas e não vou entrar nas histórias de minhas amadas amigas para fazer conjecturas ou opinar sobre o que ocorreu em cada caso.

Como respeitar a opinião de quem amamos, mas discordamos?  

Posso, outrossim, desenvolver uma habilidade que em mim ainda é incipiente: como respeitar a opinião de alguém a quem amamos, mas que pode estar tomando decisões das quais discordamos? Em ambos os casos mantive contato com as amigas e quando vi que estavam numa condição que julguei grave, em vias de comprometer sua autonomia para tomar decisões, alertei familiares próximos, que tomaram as providências que julgaram necessárias. Nada disso fiz sozinha, foi sempre um processo de um grupo de amigas preocupadas com a saúde de uma delas.

O ponto sobre o qual lhes convoco a refletir é o respeito aos direitos individuais e às opiniões alheias. Acho que um dos limites extremos é quando a pessoa oferece perigo a si própria, num contexto em que, por exemplo, está submetida à violência doméstica, é vítima de algum abuso ou opressão, sofra de psicose, perda de funções cognitivas etc.

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Se a diferença é basicamente de opinião, Fulana quer casar com Beltrano e eu o considero pouco compatível com minha amiga, não me parece o caso de escancarar minha opinião se ambos parecem satisfeitos um com o outro. Suponha que meus pais, idosos e lúcidos, decidem vender a casa enorme onde moram (casa esta que eu adoro frequentar por causa da área da piscina) e morar num pequeno apartamento na praia, até que ponto devo interferir? Posso opinar, se eles quiserem me ouvir, e até sugerir alternativas, mas só isso e nada mais. A escolha de uma profissão é questão que preocupa algumas famílias quando o filho está terminando o ensino médio. Devo fazer lobby pela escolha da engenharia se a construtora está em nossa família há três gerações? Não creio que eu deveria…

Quando interferir em oposição ao outro? 

Interferir ativamente em oposição à opinião de alguém só me parece razoável em caos de emergência, nos quais há alguma vida em risco. Foi assim com o comentarista esportivo e ex-jogador de futebol Casagrande. Um filho decidiu interná-lo para tratamento contra a dependência química de substâncias, mesmo o pai dizendo que isso não tinha nada a ver.

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Discordâncias entre pessoas próximas sempre existirão. Tudo é questão de perspectiva, um lado sabe de coisas, tem opiniões, sentimentos e ideias que podem divergir do que se passa com a pessoa do outro lado. Nosso papel é buscar a construção de pontes entre os dois lados e não ampliar o fosso. Estou tentando fazer isso, a duras penas me esforço para definir meu papel nesta ou aquela situação, sem esquecer que nos casos extremos atitudes mais contundentes podem até salvar uma vida. Distinguir entre urgências e meras diferenças de ponto de vista parece fácil, mas haja flexibilidade para dar conta de tudo!