Psicanálise da saúde ou da doença?

por Luiz Alberto Py

Minha outra mudança se manifestou simbolicamente (mas não tanto) quando passei a chamar os pacientes de clientes. Foi um sinal de meu afastamento da ideologia médica infiltrada na psicanálise que se traduzia pelo uso constante dos conceitos de “paciente”, “tratamento” “doença”, “neurose”, “trauma” e “cura”.

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Bion certa vez me disse; “Você não pode curar uma pessoa de ser quem ela é”. Entendi que podemos ajudar cada pessoa a ser uma ela mesma melhor. Podemos nos dedicar a maximizar suas qualidades, neutralizar seus defeitos. Podemos ajudar muito, mas não se pode transformar a pessoa em outra.

Com esses elementos em mente, ao longo de 20, 30 anos, fui construindo a minha visão do processo psicoterápico. Prefiro chamar meu trabalho de terapia, ao invés de psicanálise, porque esta sempre foi muito rígida em suas definições. Aliás, rígida de uma maneira assustadora. Certa vez recebi um documento da Sociedade Internacional de Psicanálise – a IPA – definindo o que seria psicanálise. Era mais ou menos assim:

“É um processo que tem sessões de 45 a 50 minutos, três a cinco vezes por semana”. O que quer dizer isso? Basta você sentar com uma pessoa e ficar três vezes, cinco vezes por semana e está fazendo psicanálise? É a investigação do inconsciente? Definição pobre. Nessa altura, eu já estava revendo de uma forma muito crítica essas coisas todas que havia aprendido.

Percebi que havia algo de muito dogmático: nesse mar tormentoso e confuso, muitos se agarram na tabuinha de salvação dos conhecimentos aprendidos e nela ficam grudados. Essa postura levava, em primeiro lugar, a uma dificuldade muito grande de expandir conhecimento, de ser criativo. E depois, a uma tendência a ficar dogmático, em relação ao já sabido. Nosso conhecimento é tão pouco e é lamentável ficar agarrado a esse pouco de uma forma rígida, um empecilho ao progresso.

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Autoridade

Por força de elementos da minha formação, sempre fui, como estudante, muito irreverente. Creio que por ter uma relação muito boa com meu pai, eu não sentia medo da autoridade.

Fui trabalhar no Instituto de Psiquiatria, como acadêmico residente, depois fui médico residente. O professor Leme Lopes, era temido pelos residentes, mas eu o achava uma pessoa normal, como todo mundo. Falava com ele de igual para igual. Certo dia, fui de camiseta para a aula, todo mundo de jaleco, e só eu de camiseta. E os colegas assustados: “Como é que você vai ficar de camiseta?” Quando chegou, ele me perguntou: “Cadê o seu jaleco?” Respondi: “Olha, professor, eu estava com pressa de vir assistir a sua aula e não deu tempo.” Ele achou graça, não ligou para aquilo. Não era aquela fera, aquele bicho-papão monstruoso. E eu o sentia assim.

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Eu tinha sempre essa relação com as autoridades. Sem receios e questionando muito, era mesmo irreverente, na faculdade ou na sociedade de psicanálise. Como meu pai era psicanalista, eu conhecia o psicanalista em sua intimidade, ou seja, sabia que ele era uma pessoa imperfeita, tinha seus defeitos, erros, dificuldades, enfim, eu sabia que ele era humano. Isto me ajudou a evitar desenvolver uma atitude de reverência que era muito freqüente entre os analisandos. Eu não tinha para com os psicanalistas aquela postura que via em amigos, colegas de aceitação irrestrita da palavra de seu analista como se qualquer coisa dita por ele fosse vinda de Deus. Cada um deles era um Moisés, com as tábuas da lei debaixo do braço, cantando aquelas verdades reveladas.

Verdades

Aliás, este tema de “verdade revelada” é interessante, pois há dois tipos de verdades: as reveladas e as conquistadas. Verdade revelada é aquela que vem de Deus. Deus falou que é assim, acabou o assunto. Da mesma forma, testemunhei nas Sociedades de Psicanálise um clima de dogma religioso: o psicanalista falou, é a verdade revelada, a gente obedece e está acabado. Em contraposição, a verdade conquistada depende de um esforço de pesquisa, de observação, de uso de método científico, etc. Particularmente, prefiro confiar no que fui descobrindo aos poucos, ao longo do tempo. O fato de se estar menos preso aos dogmas facilita que se façam experiências, se pesquise e não se aceite tudo já pronto. Erra-se muito, mas é errando que se aprende. Eu sentia medo e pensava que devia estar fazendo alguma besteira, estava tão distante do que havia aprendido, e do que os outros estão fazendo.

O que me animava era o questionamento: “Por que não olhar para o resto da alma humana, ao invés de ficar só preso às queixas, às doenças?” Evidentemente, quando um cliente procura um analista, ele o faz por que está sofrendo. Mas, não basta ficar mexendo naquela ferida, entendendo por que aquilo está incomodando, de onde veio isso. Como fazer para resolver esta questão? Aprendi, quando trabalhei em Pronto-Socorro, que na hora em que uma pessoa chegava toda machucada eu não ia perguntar se era automóvel ou caminhão que a havia atropelado, ou qual era a cor do caminhão. Minha tarefa era ver o que estava quebrado e consertar. Procurar culpados era um problema do policial de plantão. Eu sentia muita falta de encontrar na psicanálise esse tipo de abordagem: buscar melhorar em vez ficar fuçando o passado, procurando a origem, a história da doença, como era a preocupação ancestral dos primeiros psicanalistas que queriam descrever os quadros clínicos. Penso que eles estavam mais interessados em descrever do que em ajudar a pessoa.

Psicanálise da saúde

Esse foco foi me levando a dar muito mais importância a fazer a psicanálise da saúde, do que a psicanálise da doença. Até hoje, muito frequentemente novos clientes chegam ao meu consultório e afirmam que vieram saber o porquê de seus problemas emocionais. A eles respondo com uma pergunta: “Você prefere saber o porquê ou resolver o problema”. Muitos respondem surpreendidos: “Mas não precisa saber o porquê para resolver?” Percebe-se o quanto está disseminada a ideia da importância da investigação e sua quase predominância sobre a proposta de resolver a dificuldade.

Pretendo, nos próximos artigos, voltar a tratar do tema auto-estima, para mim a questão mais fundamental na psicoterapia.