por Luís César Ebraico
Feliz o paciente que a seu analista só deve dinheiro: não lhe deve chegar a suas sessões na hora, não lhe deve estar presente a todas elas, não lhe deve o cumprimento da tarefa de falar, não lhe deve sequer uma cura. Só um psicoterapeuta que brinda seu paciente com toda essa liberdade de participar ou não do processo psicoterápico é capaz de permitir que se realize, de forma realmente profunda, um projeto de cura. Só há, com efeito, liberdade de expressão, quando temos liberdade de escolha entre nos expressarmos ou não.
Isso é particularmente verdadeiro com um determinado tipo de paciente: aqueles que passaram por descompensações psicológicas por demais graves e que vêm ao tratamento com pânico de mexer novamente nos temas que, ativados, provocaram tais crises. Esses pacientes, em sua primeira abordagem, não vêm ao terapeuta para SE TRATAR. Vêm supondo que o contato com o terapeuta tem o poder mágico de exorcizar a ocorrência de novas crises, tendo o mero comparecimento pontual e assíduo às sessões o condão de fazer isso. Quando esse contato leva a uma situação em que o risco de novas crises foi significativamente afastado, começam, via de regra, a chegar atrasados às sessões, a não comparecer a elas, a produzir material irrelevante quando a elas comparecem e, se o terapeuta não tiver superior conhecimento para lidar com isso, a abandonar o tratamento.
Isso ocorre porque, quem já esteve no inferno, passando ao purgatório, confunde-o com o céu. E, lá chegado, o terapeuta, que lhe amparou para sair do inferno, fica associado a esse último, do qual o paciente quer estar a toda a distância possível! Nesse momento, não é adequado que o terapeuta transmita ao paciente qualquer INDICADOR QUE POSSA SER ENTENDIDO COMO UMA CENSURA A SEU COMPORTAMENTO. Isso porque o purgatório terapêutico é um grande desafio: diferentemente do que ocorre com o purgatório dos católicos, o purgatório da doença psicológica não tem mão única, que leva necessariamente ao céu. Tem mão dupla e pode levar seu habitante de novo ao inferno.
Em seu purgatório terapêutico, tal paciente (a) foge do terapeuta porque associa esse último a seu período de inferno e (b) sente culpa porque se sente ingrato por abandonar quem o ajudou. A solução que adota é, freqüentes vezes, criar artificialmente um AGRAVAMENTO DESNECESSÁRIO de sua própria condição mórbida como um meio transverso de voltar a suas sessões. E a probabilidade de que essa solução artificial – que, em *meu livro chamo de Produção Artificial de Evento – seja adotada torna-se maior quando o terapeuta reduz o número de sessões ou suspende o tratamento, pois tal providência é vivida como um “castigo” contra a fuga que o paciente adotara. Dois casos, ocorridos no início de minha atividade clínica, foram capazes de me ensinar o que não me ensinaram nem a literatura especializada nem meus mestres, professores ou supervisores.
Primeiro caso
O primeiro é o de um empresário de seus 45 anos que, a despeito de ser um workaholic, estava operando tais desmandos na administração de seu negócio que sua empresa se encaminhava na direção de uma falência. Era atendido cinco vezes por semana. Após cerca de dois anos de terapia bem-sucedida, TIROU FÉRIAS PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA, sua AUTO-SABOTAGEM FICOU SOB CONTROLE, a firma voltou a prosperar e ele… a PRODUZIR MATERIAL CADA VEZ MAIS ESVAZIADO DE AFETO e, portanto, mais IRRELEVANTE. Errei: disse ao paciente que não valia a pena perdermos tempo e dinheiro numa terapia que, simplesmente, NÃO ESTAVA ACONTECENDO. Ledo engano, como ficará patente pelo caso que relatarei a seguir. Encerramos, portanto, nosso contrato de trabalho. Cerca de um ano depois, entrou em contato, dizendo que queria retornar. Voltou totalmente destroçado e aos prantos, coisa nele totalmente atípica: havia, de uma só tacada, feito um investimento mirabolante, lançando sua empresa em uma situação incomparavelmente pior do que a de quando me procurara pela primeira vez. Recuperou-se emocionalmente e, desta feita, terminamos a terapia com os cuidados que anteriormente eu não tomara. Mas, trinta anos depois – tenho follow-up – sua empresa, que estivera no top do setor, nunca mais se recuperou do baque que sofreu.
Segundo caso
O segundo caso é o de um estudante universitário de seus vinte e poucos anos, atendido à razão de quatro vezes por semana, e que me procurou devido a um sintoma aparente, por primeiro, aos seus oito ou nove anos de idade, qual seja, uma fobia a exames. Inicialmente, seu distúrbio ainda lhe permitia, se bem que a trancos e barrancos, fazer os testes escolares e passar de ano. Na universidade, contudo, o sintoma se agravara de tal forma que o risco de uma reprovação se tornara iminente. Embora este caso vá servir para ilustrar o mal passo existente em se reduzir número de sessões ou aboli-las de todo sem esmerosos cuidados, o mecanismo psicológico operante neste paciente era diverso do mecanismo que anteriormente abordei: não se tratava conflito entre gratidão e culpa, pois as faltas do paciente começaram a ocorrer logo em seu segundo mês de análise, antes que meu trabalho pudesse ter trazido qualquer ganho palpável para ele. Mas eu já havia aprendido que a rejeição do paciente a aprofundar sua análise devia ser respeitada.
Fiquei esperando em vão, quatro vezes por semana, durante um mês, a presença do paciente. Nos primeiros dias do mês seguinte, liguei para o paciente, comunicando que estava sentindo falta de meus honorários. Veio, trouxe o pagamento – na verdade, pagaram seus pais, a quem provavelmente não dissera estar faltando – passou a sessão inteira em um silêncio que eu não interrompi e escafedeu-se. Seguiu-se mais um mês inteiro de espera em vão, findo o qual, ainda uma vez, liguei para ele, reclamando meus honorários. Veio, pagou, manteve-se mais uma vez de todo calado e escafedeu-se uma vez mais. Intrigado, pus-me novamente a esperá-lo. Dessa vez, contudo, passadas cerca de duas semanas, ele reapareceu e, como se nada de insólito houvesse acontecido, iniciou o seguinte diálogo:
PACIENTE: — “Tive um sonho. Eu estava voltando de uma sessão de análise. Quando entro em casa, vejo você sentado na sala, de costas para mim, conversando com meus pais, sentados em um sofá à sua frente. Passei rapidinho para o meu quarto e me tranquei lá”.
LC: — E você tem ideia de por que você passou rapidinho?
PACIENTE: — Ora, porque você poderia estar contando alguma coisa para meus pais que eu tivesse contado para você na análise.
LC: — E você tem alguma coisa que gostaria de contar a mim, mas não, a seus pais? Quem sabe isso nos permite entender suas faltas e seu absoluto silêncio nas últimas sessões a que você compareceu?
PACIENTE: — Tenho, sim.
LC: — E o que é?
PACIENTE (começando a contar, inicialmente hesitante, mas depois de forma cada vez mais solta e aparentando estar tirando enorme peso de cima de si):
— Eu e meu irmão, três anos mais novo que eu, íamos à escola pela manhã, sendo buscados por nossa mãe. Almoçávamos ao chegar em casa e, em seguida, deitávamos os três na cama de meus pais, para tirar uma soneca. Quando eu tinha acho que seis anos, por uma razão que eu não entendi, minha mãe deixou meu irmão na casa da vizinha, levando-me para deitar com ela. Deitados, ela pôs o seio para fora e perguntou: “Meu filho, você não quer mamar?” De início, fiquei assustado com a proposta, mas a tentação era grande, e mamei. A partir do dia seguinte, comecei a mudar. Tornei-me, de jovial e extrovertido, em um menino assustado e tímido, pensando o tempo todo que alguém ia descobrir o que acontecera e que, na verdade, eu sentia que deveria ter contado a meu pai.
Deixemos de lado a freqüente e improfícua discussão sobre se esse tipo de relato se refere a algo que realmente ocorreu ou se é fruto de uma imaginação infantil tão intensa que beira à alucinação. Improfícua porque alucinações intensas podem deixar em nossa memória, marcas tão intensas quanto a realidade e, assim sendo, também gerar um sem-número de sintomas, no caso desse paciente, uma fobia de exames, seja, de situações cuja natureza essencial é exatamente que se peça ao examinado que diga O QUE ELE SABE. Após esse relato, com o trabalho que se seguiu, o sintoma do paciente foi gradualmente remitindo, até não deixar mais vestígios.
É óbvio que a relação psicanalítica se presta fartamente a ser confundida com uma situação de exame: se eu, agora já mais sábio, não tivesse respeitado as faltas e o silêncio de meu paciente (atrasos, quando for o caso, também devem merecer esse respeito), estar-me-ia colocando no papel de temido inquisidor, alienando o paciente de mim, à custa de ele deixar de todo o tratamento ou de bloquear progresso dele.
Pois bem, no primeiro caso relatado aqui, simplesmente errei; no segundo, usei a cobrança de meus honorários como recurso para deixar claro para o paciente que, a despeito de suas ausências, eu ainda estava ligado a ele.
E é não sei se trágico ou cômico – melhor, é fonte de esperança – que uma criança – no caso, uma criança de seis anos – seja capaz de fazer o que, no primeiro dos casos relatados, eu, psicanalista e adulto, não fui capaz. Com efeito, Eurico pertence à safra de crianças que, por estar um de seus pais em psicoterapia comigo, foram criados – este desde o berço – em um **ambiente loganalítico. Reflitamos sobre o seguinte diálogo, ocorrido entre esse menino – de seis anos, não resisto à tentação de repetir – e sua mãe:
EURICO: — Você está triste?
MÃE: — Um pouco, meu filho.
EURICO: — Quer falar sobre isso?
MÃE: — Não. Agora não quero falar isso, não.
EURICO: — Tá, quando você quiser…
Quantos psicoterapeutas serão capazes de parecer mais com essa criança do que com um americano interrogando um muçulmano suspeito de terrorismo?
*Livro “A Nova Conversa”
**Ambiente loganalítico: Ambiente em que existe LIP (= liberdade incondicional de palavra)