Por Aurea Caetano
Somos tomados neste período por um desejo louco de resolver todas as pendências, todos os assuntos não resolvidos, todas as questões incompletas que fomos deixando ao longo do ano. Como se a simples mudança do calendário, que sabemos ser apenas uma convenção, exigisse de nós uma imensa prestação de contas.
Esse desejo imprime velocidade e intensidade extras. Os encontros, que deveriam ser calmos e afetivos, transformam-se em verdadeiras maratonas. Temos de ver todo mundo, confraternizar com todos os círculos de amigos, marcar festas e reuniões com todos os grupos diferentes. Ninguém pode ficar “de fora”. É como se não apenas o ano, mas o mundo fosse acabar e com ele todas as possibilidades de encontros significativos.
Mas, e como foram nossos encontros ao longo do ano? Como é que nos relacionamos com tudo aquilo que é importante para nós? Será que pudemos exercer nossa individualidade de forma verdadeira? E, não será isto que está em jogo neste momento?
Afinal, este é o momento do ano em que somos instados de forma coletiva a fazer uma espécie de inventário de realizações e relacionamentos. Mas, não deveria ser assim durante todo o ano? Onde estávamos nós, de verdade, durante o período do calendário que passou?
Quanto mais ausentes e distantes de nós mesmos, e de nosso modo próprio de funcionar, mais urgentes se tornam agora estas questões. Se pudermos estar, durante o ano, ligados e fieis a nosso caminho, a nossos processos, então o final do ano será apenas o final do ciclo do calendário e a continuação da vida que, de alguma forma, já vivemos.
Provoco aqui mais uma vez a importante reflexão acerca de qual a vida que queremos ter e como ser o “melhor ser humano “ que cada um de nós pode se tornar. Todos os movimentos ligados a práticas espirituais falam da importância do estar presente, aqui e agora. Depois de falar sobre o esplendor dos lírios do campo, disse Jesus no importante Sermão da Montanha: “A cada dia basta o seu cuidado” (Lucas, 12:27).
Não por acaso, Érico Veríssimo utiliza esta mesma imagem em uma belíssima carta escrita por uma personagem, Olívia, no livro que leva esse nome: “Olhai os lírios do campo”. A busca, o anseio e a invocação pela tomada de responsabilidade pela vida mais simples e plena, mais de acordo com a natureza que somos, com maior inteireza e delicadeza. Poder ser o que se é verdadeiramente, cuidando a cada dia do que há para ser cuidado.
Ou como disse o poeta, Fernando Pessoa:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Que cada um de nós possa brilhar em todo seu esplendor agora e no ano que se aproxima.