Por Angelina Garcia
Ana, ao telefone, desculpa-se com a amiga, com quem havia marcado um encontro:
– Não vou atravessar a cidade de ônibus. Meu pai deu o carro ao meu irmão outra vez. É sempre para ele, o preferido do papai. Estou morrendo de raiva!
– Que novidade! Você está sempre morrendo de raiva.
Existe aquela raiva quase imperceptível, como quando uma gaveta emperra e estamos com pressa. – Que raiva! Uma raiva boba, que só pode nos atrasar mais um pouco, porque interfere na calma necessária para encontrarmos o ponto certo de abrir a gaveta. Esta passa logo.
A raiva um pouco mais intensa pode ocorrer em situações de separação, de um casal, por exemplo. É difícil sair de um relacionamento sem machucar os dois lados. Costumamos justificar com as falhas do outro, até então embotadas, o furo das nossas expectativas. Isto dá uma raiva! De nós mesmos, embora pensemos que seja do outro. Esta também pode passar, logo que percebemos a possibilidade de um novo relacionamento.
Há, entretanto, a raiva que enraíza, a que norteia a vida do indivíduo, que se faz presente no que ele diz, no como diz, no porque diz. Tudo é com raiva. Ela já está de tal maneira incorporada ao seu modo de ser que ele nem percebe que tudo o que faz, faz com raiva. Não é raiva de ninguém em particular, ou de alguma coisa; nem se sabe quando ela começou. Mas que começou, começou. Esta é a raiva que nos faz morrer de raiva, não pelo exagero próprio da hipérbole, mas porque prejudica a qualidade de vida. A pessoa dorme mal, come mal, digere mal, e o que sai da sua boca faz mal ao outro, mesmo que não tenha a intenção.
O problema deste tipo de raiva não é ético, moral ou religioso, mas o fato dela, na sua origem, ter tomado o lugar da dor que seria causada por determinada perda, mesmo que irreal.. Acreditar, por exemplo, que não se é amado, ou menos amado que o irmão gera uma dor que a pessoa julga não ser capaz de suportar. Dessa forma, a raiva chega antes da dor, como defesa. A raiva tem a ver com o outro, tem um objeto. A dor é do próprio indivíduo.
No caso da Ana, ela teria que procurar em si o que lhe gera desconforto na relação com o pai, o que deste desconforto é provocado realmente pelas atitudes do pai e o que seria provocado por ela, pela maneira como ela percebe, sente, interpreta, compreende estas atitudes. É a dor de se perceber e perceber-se capaz ou incapaz de mudar a situação, é a dor do que lhe provocaria, talvez, constatar que não corresponde ao modelo de objeto de amor do pai e se independer deste fato.
Encarar a dor seria suportá-la a ponto de se transformar, de criar condições internas para modificar a qualidade da relação que a raiva deteriora. É um trabalho e tanto. Parece mais fácil deixar a raiva tomar conta. A raiva que nos cega, anestesia, impedindo-nos da descoberta de que podemos enfrentar a dor, antes que a raiva nos tome e mate a possibilidade de nos conhecermos e aos outros um pouco mais.