por Angelina Garcia
Como fazia nos últimos dez anos, Débora jogou, por cima das tantas coisas, mais uma em desuso. Na distração do pensamento de que um dia arrumaria tudo aquilo, um dos objetos rolou sobre seus pés. Bateu rapidamente a porta do porão, evitando que o entulho desabasse sobre ela. Da próxima vez devolvo este.
Embora as letras estivessem corroídas, ela reconheceu a caixa do pega-varetas. Tomada pela mesma sensação da adolescência, sentou-se no chão da sala, com as pernas abertas. Não tanto quanto o conseguia na casa de Ângela, a amiga de quem não sabia mais. Tirou cuidadosamente a tampa e, num arranque, despencou as varetas.
Trinta e uma peças sobrepostas em desordem. A mistura das cinco cores embaralhou sua vista, querendo levá-la à vertigem. Resistiu. Este era o ponto no qual já se dava por vencida e, embora chegasse ao final do jogo, Ângela ganhava sempre.
Pensou no amontoado do porão. Pensou no amontoado de desejos. Toda noite, antes de pegar no sono, construía as imagens do que queria para sua vida e se acreditava capaz de chegar lá. Ao acordar, as imagens se dissipavam na urgência de um cotidiano cada vez mais pesado de frustrações.
Às vezes são tantos os nossos desejos, que precisamos eleger alguns, ou apenas um, e olhar para ele como para o jogo de varetas: usar o tempo necessário na vez de jogar, não se desconcentrar pela pressão da espera do outro; não desmerecer o perigo da cor verde, de menor valor, pois exatamente ela pode impedir nosso acesso às azuis, amarelas e vermelhas, nesta progressão, mais valiosas.
É difícil, mas necessário, controlar a ansiedade de conquistar a tão cobiçada preta. Por ser única, portanto de maior valor, quase sempre se encontra em posição estratégica e exige que primeiro limpemos o caminho. A mão, embora firme e assertiva, deve tocar as varetas com delicadeza, retirando uma a uma, não como obstáculo, mas como oportunidade de enxergar melhor as possibilidades, ao mesmo tempo em que se ganha pontos.
Ali, sozinha, com o jogo a sua frente, Débora pode perceber que seu maior adversário era ela mesma. Sempre afoita, ia se deixando consumir pelas exigências do dia-a-dia, enquanto apagava o contorno das suas vontades. Não sabia por onde começar, nem o jogo de varetas, nem a arrumação do porão, nem a busca dos desejos.
O que pode nos impedir do primeiro movimento em direção àquilo queremos? A questão é complexa e não vamos esgotá-la aqui, mas talvez valha a pena pensar em coisas que antecipadamente nos paralisa: o trabalho que teremos pela frente; o medo de não conseguir chegar até o final e ter perdido tempo; a necessidade de rever valores e destruir certezas; a difícil tarefa de fazer escolhas durante a trajetória; a incerteza de que o desejo realizado corresponderá ao idealizado e, especialmente, o peso que damos a determinado desejo como definitivo para nossa felicidade.
Nossa imaginação pode tecer armadilhas, colocando as coisas ora grandes demais, ora pequenas demais; ora longe demais, ora ao alcance da mão, ora quase impossíveis.
Quase.
Débora respirou fundo e moveu a primeira vareta.