por Leonel Vieira
No artigo anterior, (clique aqui leia), comentei sobre como recordamos dos fatos vividos e como memórias traumáticas podem ser reestruturadas. Neste presente artigo, conto um caso real de reestruturação de memória traumática que foi fundamental num processo de superação da fobia de dirigir. Num próximo artigo, abordarei um caso que ilustra a questão sobre a realidade ou não dos fatos vividos numa regressão.
Júlia (nome fictício) tinha cerca de 40 anos, casada, com um casal de filhos. Trabalhava antes de se casar, mas, na época desta narrativa, apenas ajudava um pouco na empresa do marido.
Freqüentemente, sentia-se insegura em muitas coisas que fazia. Queria fazer tudo perfeito, tinha muito medo de errar. Este medo de errar estava presente também ao dirigir seu carro, um dos motivos que a levaram a fazer psicoterapia. Embora já dirigisse há anos, algumas vezes esta insegurança aumentava e pensava: “se eu pegar o carro, vou bater”. Ao pensar isto, sentia muito medo, até pavor, pois imaginava que, se batesse num outro carro, o motorista deste ficaria enfurecido e a agrediria fisicamente.
Estava com acompanhamento psiquiátrico e já havia feito um curso de direção especializado em ajudar pessoas com fobia de dirigir, porém sem resultados.
É surpreendente como a mente humana funciona! Nunca me canso de admirar sua complexidade e sua lógica, que vai além da simples lógica linear a que estamos acostumados. Esta regressão que descrevo mostra como um episódio, aparentemente sem relação com o ato de dirigir, tinha uma profunda conexão com sua fobia em dirigir no trânsito.
Para entender alguns aspectos desta regressão, alguns dados preliminares são importantes. Seu pai era alcoólatra. Quando bebia, ficava violento, embora nunca tenha lhe batido, mas seu comportamento agressivo causava muito medo nela e em toda a família: “quando ele bebia, não era uma pessoa muito boa”.
Quando a regressão começa, Júlia vê-se com cerca de 12 anos, no início da manhã, aprontando-se para ir para a escola. Sai de casa e, como habitual, passa na casa de uma amiguinha para irem juntas. Quando chega lá, a irmã mais velha da menina a atende e lhe diz que a irmã caçula havia ido mais cedo para a escola naquele dia. E lhe dá uma notícia que a deixa profundamente consternada: o pai de Júlia estava deitado, bêbado, em frente ao portão da escola. Provavelmente havia saído de algum bar de madrugada e caíra de bêbado na calçada em frente à escola, ficando lá dormindo até então.
Júlia, neste momento, sente medo, vergonha, um nó na garganta, pressão na cabeça. Sente-se inferior a todo mundo, com inveja das amigas que, a seu ver, tinham pais normais. Pensa que as pessoas estão falando dela coisas como: “Coitadinha, tem um pai que não tem responsabilidade para nada”. Quer se esconder: “Tenho medo que alguém fale algo para mim”. E pensa: “Talvez seja melhor não ir para a escola. É melhor ficar em casa para não ver ninguém”. Mas, decide ir para escola assim mesmo, pois sabe que a mãe, muito brava, não permitiria que voltasse para casa sem ter ido à escola.
Decide, então, entrar na escola pelo portão dos fundos, assim não teria que passar por seu pai dormindo na calçada. Caminha por um terreno baldio que vai dar nos fundos da escola e, andando, fica “segurando a vontade de chorar”, pois não quer “que meus colegas pensem que sou uma coitada”.
Ao entrar na sala de aula, sente-se inferior às colegas que, na sua fantasia, tinham “pais normais”. Por isto, não se sente merecedora de estar ali no meio delas: “Sinto que estou invadindo o espaço dos outros. Eu não tenho o direito de estar aqui. Eu sou diferente dos outros”. Sente medo, dor no pescoço, pressão no rosto, vergonha. Acha que sua vergonha está escrita em seu rosto. Acha que estão “rindo de mim, fazendo gozação”. Sente, também, uma tristeza muito grande, angústia, e pensa que é uma “pessoa sem nenhum valor, sem nenhum respeito”. Tem medo de que a agridam, “me joguem pedra”.
Quando lhe pergunto o que tem a ver o que ela está vivenciando com seu medo de dirigir, percebe que, também no trânsito, sente-se invadindo um espaço que não é dela, um espaço onde não tem direito de estar, pois é diferente, inferior às outras pessoas. E que, por isto, sente medo e imagina que, se fizer algo errado, não haverá tolerância com ela, vão agredi-la, talvez até matá-la!
Digo-lhe que ela pode começar a mudar aquela crença negativa sobre si mesma, a crença de que é inferior às outras pessoas. E lhe pergunto: “Você quer mudar isto? Sim ou não?” (Esta pergunta é importante, pois a mudança de crenças profundamente arraigadas, para ser efetiva, deve ser algo que o paciente queira realmente, porque se sentir que é uma decisão de outra pessoa, não dele próprio, a mudança não perdurará). Júlia responde: “Sim, eu quero ser igual a todo mundo, a todas as pessoas”.
É importante ressaltar que a terapia de regressão vivencial é uma técnica complexa, que atua profundamente no inconsciente e, por isto, se não for bem conduzida, por profissional habilitado, poderá fazer mais mal do que bem. Além disto, há casos para os quais é adequada e outros para os quais não é. Por estas razões, só deve ser aplicada por psicólogos ou psiquiatras com uma formação específica neste campo, o que inclui terem se submetido, como pacientes, a um processo de terapia didática em regressão vivencial
Ajudo-a, então, a elaborar o que, na Terapia de Regressão Vivencial, chamamos de “redecisão” – uma frase que sintetize, cognitiva e emocionalmente, a mudança que já está sendo desencadeada a partir daquela *catarse que Júlia está vivenciando. No processo de elaboração da frase de redecisão (processo que o psicoterapeuta conduz apenas na forma, não no conteúdo, o qual deve ser genuinamente do paciente), Júlia, iniciando a superação do seu trauma e, conseqüentemente, da crença negativa que tem sobre si mesma, diz, já enfocando o ato de dirigir: “Eu posso ser igual às outras pessoas”. A partir daí, percebe que pode fazer “tudo o que as outras pessoas normais fazem”, chegando, então, na sua frase de redecisão: “Eu dirijo o carro com segurança”.
Testo, através de algumas perguntas, a ressonância emocional que tem, para a Júlia, a frase que ela elaborou na sua redecisão e se ela a consegue colocar em prática concreta. Júlia diz que se sente aliviada e realizada, e sente que consegue “ser igual às outras pessoas” e que dirigir para ela “é importante, eu me sinto grande, importante” (em contraste com a maneira com que, muitas vezes, se sente – pequena e sem importância).
No processo de uma sessão de regressão, após a redecisão há, como já comentei em artigo anterior (clique aqui e leia), um processo de desprogramação das emoções e sensações doloridas revivenciadas na sessão e o fortalecimento de emoções e sensações que ajudam a superá-las e que apóiam a redecisão. Além disto, ajudo o paciente a simular uma situação, num futuro próximo, na qual ele coloca em prática a redecisão, com naturalidade, além de programar os próximos passos neste sentido. No caso da Júlia, os próximos passos programados foram: vir à próxima sessão dirigindo e, durante a semana, praticar dirigindo em pequenos percursos.
Já na sessão seguinte (a sessão integrativa, na qual ajudo o paciente a integrar melhor, a sua vida atual, o que vivenciou durante a regressão), Júlia descreveu um progresso significativo, sentindo-se mais segura ao dirigir. Contudo, viera de táxi, pois ainda não estava se sentindo suficientemente segura. Entretanto, após a sessão integrativa, conseguiu realizar esta meta.
No decorrer no processo terapêutico, sua segurança e habilidade no trânsito foram crescendo, a tal ponto que Júlia não apenas vinha a todas as sessões dirigindo, como também ia sem medo para todo o lado, e o marido, embora muito cioso de sua própria habilidade como motorista, confessou-lhe que ela estava dirigindo melhor do que ele.
*Catarse: efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, 1a. edição. Ed. Nova Fronteira).