por Leonel Vieira
Conforme prometi no artigo anterior, “Reestruturação de Memórias Traumáticas – Parte II” (clique aqui leia), narro aqui um caso real de regressão, no qual emerge a questão: realidade ou fantasia do inconsciente? Como nos demais casos que expus, o nome e demais dados que possam identificar o paciente foram alterados. Contudo, na essência o caso ocorreu conforme narrado. Sintetizei aqui, duas sessões de regressão que enfocaram o mesmo tema e suposto evento traumático. Eventos podem ser sentidos como traumáticos pelas pessoas não só quando elas o sofreram como vítimas, mas também quando tiveram na situação, um papel de algoz, isto é, de agressor ou responsável pelo sofrimento de outra pessoa. Nas situações de algoz, a dor que o paciente sente após o ato cometido (imediatamente, ou tempos depois) é moral, de remorso, auto-recriminação. No caso aqui narrado, a paciente vivenciou ambos os papeis – como algoz e como vítima – e ambas as dores.
Cláudia era uma advogada por volta dos 50 anos de idade, casada e com filhos. Quando chegou a mim, estava deprimida. Parecia estar sem ânimo e perspectivas em relação à vida em geral, embora estivesse sob medicação psiquiátrica. Apesar de ter vindo à procura de terapia de regressão vivencial, era algo cética a respeito e não gostava de rever seu passado. Isto ficou claro por seus comentários nas sessões de *anamnese e por sua resistência em recordar fatos do seu passado, mesmo aqueles que pareciam não ter carga emocional significativa.
No início da sessão seguinte a uma primeira tentativa frustrada de fazê-la regredir, emergiu em Cláudia um sentimento que já havia aparecido nas sessões de anamnese – um sentimento difuso de culpa. Mas, neste momento, além deste sentimento difuso habitual, havia um foco mais concreto: sentia-se culpada por não conseguir regredir. Utilizando este sentimento como ponto de partida, tentei então uma abordagem alternativa – o processo de regressão por intensificação emocional, baseado no método da palavra ou frase chave de **Netherton.
O resultado foi surpreendente para Cláudia. De repente, ela começou a dizer “Acho que estou ficando louca, acho que estou ficando louca!”. Eu entretanto estava tranqüilo, pois sabia que Cláudia não tinha predisposição para psicose, mas parecia ter entrado finalmente num estado alterado de consciência (EAC) adequado à regressão, e estava vivenciando algo que contradizia a realidade a que estava habituada e ao seu ceticismo. Perguntei-lhe sobre a razão dela pensar que estava “ficando louca”. E Cláudia começa então a narrar o que estava vivendo.
Vê-se num ambiente muito diferente da sala em que estamos. Está num grande salão, onde parece estar ocorrendo um julgamento, numa época muito antiga. Quando lhe pergunto que época é esta, responde-me que parece ser a Idade Média, final do século XIII. Quando lhe pergunto o local, identifica-o como o sul da França atual, próximo à Espanha (durante a regressão, muitos pacientes descrevem a experiência como um “sonho acordado”, durante o qual parecem viver duas personalidades – aquela que estão vivenciando na regressão e a atual, que fica como um observador. As respostas às perguntas do psicoterapeuta podem vir de uma das duas personalidades).
Continuando, Cláudia vê-se como a pessoa que está presidindo ao julgamento: é um cardeal, inteligente, poderoso, aparentemente sem escrúpulos ou compaixão na busca do poder. Sua palavra é decisiva neste julgamento que envolve, além de outras pessoas, uma mulher que Cláudia reconhece como uma pessoa muito próxima e querida da sua vida atual, mas já falecida.
Muitas dessas pessoas que estão sendo julgadas têm algum grau de parentesco com este cardeal, que pode, se quiser, absolvê-los, pois sabe que eles não têm outra culpa a não ser uma crença diferente daquela imposta oficialmente pela Igreja. A mulher chora e suplica por misericórdia, em vão. O cardeal, com quem Claudia se identifica, não faz tentativa alguma para salvá-la, nem aos demais, embora a condenação equivalha à pena de morte. Sabe que, se não os condenar, ficará mal aos olhos de seus pares e assim perderá pontos importantes na sua luta pelo poder.
Mais tarde, ainda nesta suposta vida passada, vê-se com mais de setenta anos: sente-se desconfortável, entorpecido e angustiado, com um forte sentimento de culpa, remorso por muitas coisas que fez em sua vida, mas principalmente pela lembrança daquele julgamento. Está de frente para uma janela e, de repente, alguém (que entrou silenciosamente no aposento), o esfaqueia pelas costas. Porém, a dor que sente é no peito, no coração, onde a faca parece tê-lo atingido. A dor da facada parece se misturar com uma dor de angústia. Mas, sente também que é “um alívio” e pensa: “É bom eu ir embora, eu não valho nada, eu não presto para nada”. Dói-lhe a garganta, sente a boca seca.
Em seguida, vê-se fora do corpo e, olhando-o estirado no chão, pensa: “Eu não sou nada, eu fiz tudo errado”. Sente desgosto de si mesmo e pensa ainda: “Eu não me suporto por ser assim, por tudo que eu fiz”. Identifica seu assassino: é parente da mulher que foi condenada à morte. Mas não sente qualquer sentimento negativo por ele, apenas um alívio por ter terminado essa vida.
Estes pensamentos são o que, na Terapia de Regressão Vivencial, chamamos de decisões emocionais que a pessoa toma no momento mais traumático. Neste momento dolorido, tais decisões emocionais gravam-se no inconsciente e passam a funcionar como programações negativas, afetando pensamentos, emoções, percepções e comportamentos da pessoa, como um vírus digital que afeta o desempenho de um computador. Mas podem ser anuladas, ao serem recuperadas por meio do processo de regressão que possibilita ao paciente reviver a situação traumática e as emoções, sensações e pensamentos vividos e que são, então, reconstruídos no contexto da sua personalidade atual.
A ***catarse alivia Cláudia e a coloca num estado mais calmo, adequado à elaboração da redecisão, isto é, da frase que sintetiza a mudança de pensamentos e emoções que já está começando a acontecer nela. Esta frase funcionará, numa analogia com um vírus de computador, como uma “vacina”, anulando total ou parcialmente o “vírus”, a programação negativa gravada em seu inconsciente. No caso, a frase escolhida por Cláudia, ainda em estado alterado de consciência, é uma forma de se redimir: “eu dedico a minha inteligência para fazer o bem”. Ao falar a frase, Cláudia sente alívio e tranqüilidade, o que indica que teve ressonância emocional profunda para ela.
Esta redecisão foi apenas o início da caminhada de Cláudia em direção a uma melhor qualidade de vida. Outras regressões (algumas em outras supostas vidas passadas e outras na vida atual) se sucederam, seguidas de sessões que a ajudaram a integrar melhor essas vivencias à sua vida cotidiana, e praticar concretamente suas redecisões.
O que Cláudia vivenciou, nesta regressão, foi real ou imaginário? A solução para esta dúvida não é simples e talvez seja muito difícil chegar-se a uma resposta conclusiva sobre algo que supostamente teria acontecido séculos atrás, embora todos os dados descritos (muitos detalhes não estão aqui narrados por questão de espaço) durante a regressão sejam coerentes com dados históricos da época, inclusive nomes e locais. No entanto, esta regressão foi terapêutica para Cláudia e a redecisão tomada a ajudou, e tem ajudado, a tomar decisões que a têm levado a progredir em direção a uma vida mais produtiva e feliz.
*Anannese: reminiscência, recordação. Nas sessões de anamnese, que antecedem as primeiras regressões, faço um levantamento com o paciente de sua história de vida, antecedentes familiares, sua concepção, gestação, infância, adolescência, idade adulta até o momento atual. A anamnese é, de fato, um processo de regressão em vigília, durante o qual, além da verificação da existência ou não de fatores que desaconselham a regressão (como doenças cardíacas descompensadas, tendências psicóticas e outros), há o fortalecimento da relação de confiança psicoterapeuta-paciente, uma definição mais acurada do tema ou temas que serão abordados nas sessões de regressão. Isto tudo tem, muitas vezes, um efeito psicoterapêutico, propiciando alguma melhoria nos sintomas que levaram o paciente à psicoterapia.
** Netherton, M., and Shifrin, N. Past Life Therapy. Morrow: New York, 1978.
***Catarse: o efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida.