por Regina Wielenska
Nosso mundo é rico em possibilidades, e nem todas são agradáveis. Há quem more em grutas, sob viadutos, nos obscuros e insalubres subterrâneos das grandes cidades, em casebres de favelas, em meio ao mangue, no topo de árvores, ou invadindo edifícios arruinados. Geralmente isso ocorre por conta dos desequilíbrios sociais, como miséria, guerras, corrupção e doenças psiquiátricas. E também há os que moram em casas e apartamentos bem estruturados, ricos em equipamentos, facilidades sem fim.
Algum tempo atrás, uma conhecida me contou histórias da avó. Uma delas referia-se ao fato da sala de visitas, o cômodo principal da casa, com seus refinados móveis, espelhos, lustres e vasos de cristal e até piano dourado, ser espaço vetado aos moradores da casa. A justificativa era que o local era destinado a receber visitas, e dava trabalho mantê-lo em ordem, limpar os cristais, passar cera no chão até as tábuas corridas brilharem. E seu uso, por parte dos moradores, implicava em mais trabalho de manutenção e na possibilidade de gastar o veludo do estofamento, quebrar um vaso, ou algo pior.
O curioso é que as tais visitas nunca ocorriam, a velha senhora era mestre na arte de driblar parentes e conhecidos, afirmando que não poderia recebê-los naquele dia. Alegava um ou outro impedimento e se empenhava em frequentar a casa até de quem não a havia convidado. Orgulhava-se de achar que sua sala era a mais bonita e arrumada de todas que conhecera. Depois da morte da avó, a sala de visita, verdadeiro mausoléu, sem conexão com o mundo cheio de vida dos netos e filhos, foi despojada de seus intactos pertences. Quem quis levou o que bem entendeu, e o muito que sobrou foi impiedosamente arrematado por um antiquário. O dinheiro foi dividido entre os herdeiros, junto com o da venda da casa, a qual se transformou num edifício "modernoso.
Minha conhecida continuou a narrativa. Por curiosidade, visitou um dos apartamentos decorados no stand de vendas. Três minúsculas suítes, uma esnobe suíte máster com hidromassagem e closet, quatro vagas de garagem, cozinha, amplo living com home theater, tudo acoplado ao terraço gourmet, item indispensável da contemporaneidade. Dependências para empregados (apenas uma pessoa com até 40 quilos e altura máxima de 1.50 conseguiria habitar o surreal cubículo e WC a ela reservados). A conversa tomou outro rumo e não tive mais detalhes.
Cada um na sua
Depois, fiquei pensando: nas modernas famílias abastadas tem sido comum que cada um fique enfurnado em seu casulo, talvez uma das suítes, com computador, tocador de MP3, celular megaequipado, TV de LCD transmitindo anestesiantes reality shows. Refeições são feitas nesse mesmo espaço: cada um na sua, de preferência algo que possa ser deglutido sem uso de talheres e menos ainda de bons modos, dispensando a mesa de refeições e a companhia de alguém da família. Os filhos carregam namorados e amigos para as respectivas suítes e assim a família cada-macaco-no-seu-galho segue vivendo.
É interessante notar que em inglês, a sala de estar, a nossa sala de visita, é denominada living-room: o espaço, a sala, onde supostamente se vive. Individual ou coletivamente? Interagindo de verdade ou escapando das conversas inerentes ao convívio? Como aquela avó apropriou-se do espaço que lhe foi destinado? Quantos saraus, festas, cafezinhos e conversas animadas poderiam ter ocorrido na sala tão faustosa, mas oca de vida? De que lhe serviu pagar caro por objetos que não serviram aos propósitos para os quais foram criados: iluminar noites de festa, acolher flores recém-colhidas, dar assento a pernas cansadas, produzir sons melodiosos, espelhar sorrisos? Felizmente, netos e filhos descobriram as delícias de ficarem na cozinha, proseando muito ao redor do bule com café e da fornada de biscoitos, ou curtindo a brisa na varanda ao redor da casa. O quintal amplo era território dos pequenos, que entravam na casa basicamente para fazer lição, tomar banho, participar com os adultos das refeições à mesa, dormir, e sonhar com mais brincadeiras.
No apartamento moderno, onde antes existiu a casa da avó-que-nunca-usou-a-sala, a situação pode ser oposta: todos isolados, pouco convívio, a garota manda SMS pra um dos irmãos que "reside" no quarto ao lado, a mãe assiste à novela no home theater enquanto o pai se entretém, largado na cama do casal, com um dos oito canais de esporte, zapeando desesperadamente de um para outro. Mais tarde os dois trocam poucas palavras e caem na cama, misto de exaustos com entediados… A pizza esfriou sobre a mesa da copa, para algum esfomeado arrematar a fatia restante antes de ir pra escola. A terceira suíte é para raros hóspedes e virou depósito de tranqueiras tecnológicas, tipo esteira ergométrica, computador velho, TV volumosa.
Qual jeito de viver assegura bem-estar?
Cada cabeça uma sentença, diz o velho ditado. Qual jeito de viver assegura bem-estar e a sensação de que essa empreitada é algo que vale a pena? Não há respostas prontas, mas proponho ao leitor algumas questões. Para que adquirimos coisas? Um piano dourado merecia destino musical mais digno, num conservatório ou na casa de alguém que adorasse dedilhar canções. Móveis revestidos de veludo infelizmente não puderam ficar puídos, seriam bem aproveitados ao abrigarem namorados, contadores de piadas, amigos em visita, leitores de romances. O belo, o fino, qualquer coisa assim só faz sentido possuir se houver chance de desfrute. Ou que o dinheiro fosse empregado de forma mais ética, sensata, afetiva! Se a sala fosse tão simples quanto o quarto, o avarandado ou a cozinha, caberia mais gente no coração e na vida dos moradores, as crianças poderiam encenar peças de teatro em dias de chuva, sei lá o que mais. Menos chão brilhando e mais plenitude.
Menos é mais
Ser parte de uma família, tornar-se pai ou mãe, cada caminho tem implicações. Será que apenas a premência de um transplante renal do filho menor aproximaria os estranhos consanguíneos que se trombam nos corredores do apartamento de luxo? Por que casar e ter filhos? Por que montar home theater, comprar esteira, assinar mais canais do que conseguimos assistir? Às vezes menos é mais, já afirmou Ludwig Mies van der Rohe, o arquiteto alemão que liderou o movimento Bauhaus, fenômeno cultural que revolucionou o jeito de viver de muitos.
Usando a imaginação, dá para sentir como a varanda, a cozinha e o quintal da velha casa foram bem aproveitados, a despeito de sua simplicidade formal. Funcionalmente falando, eram espaços essenciais para o convívio de qualidade, que agregou três gerações de uma família, ainda que a avó reconhecidamente tivesse seus resquícios de mesquinharia e soberba.
No mundo ideal, espaços seriam organismos vivos, bem cuidados e aproveitados, capazes de se transformarem conforme as reais necessidades de seus donos. Nós, os ocupantes, somos seres complexos e que não deveríamos desperdiçar a oportunidade de trocar ideias, afetos, sonhar juntos e, solidariamente, construir realidades que nos preencham de verdade. Entulhar objetos em espaços físicos, e lá esquecê-los, como se fossem órfãos à espera de seus pais, parece manter uma relação de inversa proporcionalidade com o espaço psíquico. Eu me explico: se não estamos em equilíbrio, nos agarramos aos objetos de forma confusa e insensata. Não conseguimos realmente nos apropriar das coisas e da vida em família, com todas suas alternativas, riscos e riquezas. Estas, por sinal, não são bens que se compra em antiquários ou lojas de eletrônicos. E não há preço que as defina.
Claro que as condições atuais de vida são distintas das de nossos antepassados. Abençoadas a ciência e a tecnologia, que nos ajudam a viver mais e melhor. Não há um só jeito de viver junto, ou sozinho. Mas não vamos deixar em branco a oportunidade de repensar nossas práticas de consumo, convívio e ocupação do espaço. Espaço. Este termo tem muitos sentidos. Podemos, inclusive, pensar no espaço psíquico, tudo que mora sob nossa pele, com suas potencialidades e meandros. Este espaço interno existe quando nos comportamos (pensando, sentindo, agindo), e nessa condição corpórea interagimos com os outros, aprendemos e ensinamos, numa relação de influência recíproca. Ocupamos espaços, coletivos e individuais. Gerenciar a partilha desses espaços é a arte do viver na sociedade. Sejamos, pois, artistas bem-sucedidos.