por Monica Aiub
“Este livro traz uma pequena incursão pelo mundo pós-evolutivo no qual nossa evolução biológica estancou. Ela está cada vez mais retardada pela civilização, que criou uma imensa interface entre o homem e a natureza, praticamente impedindo a ocorrência da seleção natural. Nosso acoplamento ao mundo passou a ser, cada vez mais, através do virtual. Nosso organismo passou a enfraquecer e vivemos a combinação mórbida do aumento da longevidade produzido pela medicina com a involução do nosso corpo.” (João de Fernandes Teixeira)
Com este trecho descrito ao lado, João Teixeira inicia seu livro A mente pós-evolutiva, e sua leitura me provocou a observar alguns aspectos de nossa vida cotidiana e o quanto já somos este ciborgue, este misto homem e máquina, matéria orgânica e inorgânica, que constituirá o pós-humano anunciado pela ficção – e não apenas por ela – para um futuro próximo.
O leitor concorda que “nosso acoplamento ao mundo passou a ser, cada vez mais, através do virtual”?
De compras a cursos, de amigos a namorados, de conversas a filmes, de músicas a jogos, grande parte de nossas atividades é hoje virtual, exigindo pouco, e ao mesmo tempo muito movimento de nosso corpo. Pouco porque torna-se um movimento de relação por interfaces, e ainda que permita muitos ambientes virtuais, as interações são limitadas. Muito porque ainda que estejamos sentados diante do computador, todo o nosso corpo se movimenta, todos os nossos sentidos são ativados, assim como muitos de nossos mapas neuronais, durante nossas interações virtuais.
O leitor poderá afirmar que alguns de nossos sentidos não são ativados, como por exemplo o tato não é ativado da mesma maneira que ocorre com um toque. Posso pensar no toque do outro em meu corpo, num abraço, num afago, mas este pensamento, ou mesmo a voz do outro descrevendo este tato pode não ter a força, o impacto que o próprio toque teria. Obviamente, há que se respeitar as singularidades, porque para algumas pessoas o impacto pode ser maior através de seus pensamentos do que através do próprio toque.
Por outro lado, dados vários elementos de nossa sociedade, nem todas as vezes em que nos encontramos diante do outro temos um toque, um abraço, um afago, embora o tato seja um sentido que percorra toda a extensão de nosso corpo.
Os artistas Ricardo Barreto e Maria Hsu, conjuntamente com o grupo Amudi de Arte e Tecnologia, apresentaram na FILE 2010, Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, a obra “feelMe” (http://www.youtube.com/watch?v=ivGbgsXFV64). Ela consiste num sistema a partir do qual é possível transmitir à distância a sensação tátil, uma possibilidade de interação entre as pessoas mediada pela máquina.
Na obra há duas “camas”. Uma transmite a sensação tátil e a outra recebe. O participante que deita na cama transmissora imprime suas marcas com os movimentos de seu corpo. Suas impressões serão transmitidas a outro participante, que se deita na segunda "cama" (receptora). O participante da segunda cama recebe os movimentos simultaneamente, nas mesmas posições e em intensidades em que o primeiro se movimenta, só que em negativo, ou seja, onde a superfície que na primeira cama se afunda, na segunda é elevada. As camas podem estar distantes entre si em alguns metros ou muitos quilômetros. Todo o movimento é controlado por sensores, microcontroladores, motores, computadores, enfim, uma plataforma de comunicação tátil à distância.
Imagine, agora, você em sua casa, deitado na “cama” – plataforma de comunicação tátil à distância – recebendo a comunicação tátil de alguém que está muito, muito distante. O abraço do amigo, o toque do namorado, o afago de um familiar… ampliam-se as possibilidades de comunicação com a interface da máquina.
Ainda sobre a ideia de acoplamento ao mundo através do virtual, nosso sentido de orientação espacial, para ser precisado e facilitado, foi, aos poucos, substituído pelas bússolas, e atualmente pelos GPSs. Já há pessoas que não se localizam nas ruas sem seus GPSs. Nossos telefones celulares nos permitem contato com o mundo em qualquer lugar, nossos iPods permitem acesso a uma rede de notícias, a bibliotecas, videotecas, enfim, um universo de conhecimento e interação.
Assim como temos dificuldade em compreender a vida sem alguns dos instrumentos criados e incorporados em nossa história, embora ela continue possível em alguns contextos, provavelmente as próximas gerações não compreenderão como foi possível viver sem as tecnologias que serão por ela incorporadas.
Poderíamos com isto concluir que o próprio passo do progresso será o pós-humano?
Seria ele o resultado de um processo de incorporação da tecnologia?
A ideia de um organismo que estancou no processo evolutivo, enquanto a longevidade aumenta o corpo involui, soa como o ato preocupante. Vida sedentária, máquinas que se movem por nós, outras que talvez possam vir a ser movidas somente pelo pensamento…. Difícil imaginar as tecnologias que serão incorporadas nos próximos anos, assim como nos foi impossível imaginar, cerca de cem anos atrás, como seria nossa vida hoje.
Contudo, ao observar as pesquisas atuais que pretendem ler os códigos de comunicação entre as células, permitindo, a partir da apropriação de tais códigos, desenvolver tecnologias capazes de movimentar próteses ou até mesmo seres artificiais, talvez João Teixeira esteja certo, e nossa evolução biológica esteja atrelada à incorporação da tecnologia, que criará seres híbridos, mistos de homem e máquina. Em alguns aspectos, já não somos? O que você pensa a respeito?
Referências Bibliográficas:
TEIXEIRA, João de Fernandes. A mente pós-evolutiva: A filosofia da mente no universo do silício. Petrópolis: Vozes, 2010.