por Fátima Fontes
Introdução
“Uma consequência da repressão do sentimento de ‘ser’ é que a imagem que o homem moderno tem de si mesmo, bem como a sua própria experiência e autoconceito como indivíduo responsável, tem igualmente se desintegrado.”
Psicólogo Rollo May, no livro: Psicologia Existencial. Porto Alegre: Editora Globo, 1974.
Queridos e queridas leitoras, entramos em mais um ano de espaço reflexivo, desta vez, o ano de 2015.
Outro tempo precioso para vocês e para mim, em que nos relacionaremos e acompanharemos muitos relacionamentos, sigamos então aproveitando o espaço desta coluna para pensarmos em nós mesmos e em nossas relações, ok?
Neste nosso primeiro texto do ano, me inspirei em várias histórias que me cercam de pessoas que sofrem a dor de terem sido “descartadas”, quando não são mais úteis em seus vínculos. Isto é muito grave e precisamos resistir a esta tentação tão humana e antiga, de nos ligarmos uns aos outros, não pelo bem da partilha promovida pelos “bons encontros”, e sim pelo que eles podem nos proporcionar.
Desejo que esta reflexão possa nos ajudar a nos relacionarmos em melhores bases, afinal também aprendemos socialmente que “somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos” (Exupéry, livro: O Pequeno Príncipe).
Perdemos a noção da responsabilização por nós mesmos e pelo outro
A noção de responsabilização nos é transmitida desde que somos muito pequeninos. A maioria de nós foi ensinada seja por pais, familiares, vizinhos, professores, ou algum outro adulto a entender que as nossas ações tinham consequências e que não podíamos fazer simplesmente o que quiséssemos, quando e como desejássemos.
Somos inseridos no código humano da realidade e da convivência, porque nosso psiquismo, nossa mente, passa a ser guiado pelo “princípio de realidade”, termo proposto por Sigmund Freud que se refere a um dos dois princípios que regem o funcionamento mental, e que forma par com o “princípio de prazer”, e o modifica, pois consegue se impor como princípio regulador, o que permitirá psiquicamente que nos desviemos e possamos adiar a satisfação direta de nossos desejos, em função das condições colocadas pelo mundo exterior.
Conheceremos assim o limite das nossas ações e impulsos, porque possuímos o mecanismo mental para isso, fato que nos habilita a aprender e a seguir regras e ações para a convivência social num padrão civilizatório.
Contudo, o que temos assistido em nosso mundo ocidental, sobretudo ao longo dos séculos XX e XXI, nos deixa assombrados, pois de civilizados nos tornamos bárbaros e irresponsáveis, temos acompanhado o surgimento de gerações de pessoas que têm aprendido a banalizar a vida, ao invés de respeitá-la e a se relacionarem de forma sombria e destrutiva, pois são guiados pelo que unicamente lhes interessa e lhes dá prazer.
Logo, o capítulo da socialização onde se lia “aprendendo a ser responsáveis pelo que escolhemos e fazemos” foi arrancado dos códigos de convivialidade, aliás, muitas vezes ninguém nem mais sabe que código é esse.
Pessoas monstruosas, mimadas e egoístas
Sem a aprendizagem das responsabilizações, não nos sentimos mais obrigados a nada, não queremos nos comprometer com nada e passamos a nos relacionar de forma superficial e vazia, sempre orientando nossas ações e relacionamentos pelo que for melhor para cada um. Pessoas monstruosas, mimadas, egoístas e irresponsáveis têm ocupado a cena social privada e pública.
Nada mais esperado, portanto, do que o cenário relacional em que vivemos: as pessoas se escolhem, se dizem apaixonadas umas pelas outras, constroem planos e realidades e quando a convivência pede a mútua responsabilidade por tudo o que diz respeito ao cotidiano das realidades, alguns simplesmente se dizem cansados, relatam que o amor acabou e rompem seus vínculos.
Isso não quer dizer que certas relações disfuncionais, carregadas de violências psicológicas e muitas vezes físicas, não possam e devam se romper. Mas talvez valha a pena pensarmos um pouco no processo pelo qual saímos da funcionalidade relacional, ou seja, convivíamos bem e passamos a nos fazer mal mutuamente, nos tornando assim disfuncionais em nossas relações.
Entre desejos, fantasias e expectativas exageradas: como construímos nossos relacionamentos
Diz um ditado popular bem antigo que “vassoura nova varre bem…”, pura sabedoria popular, que podemos aplicar aos nossos relacionamentos. No tempo de corte e da conquista relacional, tendemos a fazer bem uns aos outros, mas essa “porção mágica do amor” tende a acabar, e aí acompanhamos a cenários os mais variados.
Três formas de se ralacionar
Tanto há aqueles que se descobrem vivendo com pessoas diferentes das “projetadas” no tempo da paixão e conseguem aprender a amar e respeitar essas pessoas como elas são, realidade da qual fazem parte, infelizmente, um menor grupo de pessoas; quanto há aquelas pessoas que pedem quase que imediatamente a separação do outro, dada a sua impossibilidade de viverem com a face real do outro, talvez seja esse o maior grupo que encontramos na atualidade, em que os relacionamentos estáveis tendem a não durar mais do que seis meses.
Há, ainda, um terceiro grupo que parece adiar infinitamente uma postura resolutiva para seus conflitos de convivência, como se ficassem durante muito tempo “em cima do muro”, nem aceitam nem rejeitam o outro, parecem, ao invés disso, viver num ciclo neurótico de queixumes, insatisfação e infelicidade tendo como pivô de tudo a “não aceitação da vida com esse outro”.
Quando nos aproximamos das pessoas que fazem parte desses três grupos, certos comportamentos são comuns, como por exemplo: as que conseguem “negociar as diferenças” e conseguem criar uma realidade funcional, são pessoas que aprenderam em suas vidas a separar fantasia da realidade e a serem menos levadas a esperar demais do outro, normalmente porque foram respeitadas em seus ambientes de formação familiar e social.
Em contrapartida, tanto o grupo dos “que rompem com facilidade”, quanto o dos “eternamente queixosos”, construíram as bases de suas relações abarrotadas de idealização e projeções, o mais das vezes exigem da pessoa amada, a “reparação plena de tudo o que não se teve”, afetivamente falando. Há uma exigência de alto desempenho afetivo do outro, e uma baixa tolerância aos limites e às falhas do outro.
Como disse no início deste artigo, nos deparamos hoje mais do que em qualquer outro tempo, com um árido e doloroso cenário relacional, que abre caminho para as mais diferentes formas de desrespeitos e violências psicológicas e físicas tanto para adultos quanto para os seus filhos, quando se tem.
Mas há que se pensar em alternativas a tudo isso, e nessa direção proponho a seguir, um caminho de confecção de um antídoto relacional, que tem bases em sabedorias milenares, e que nos pode servir de contraveneno ao mundo dos relacionamentos sem responsabilização e esvaziados de realidade.
Recuperação do respeito e da responsabilização perdida
Para trazermos a noção de uma realidade afetiva mais respeitosa e responsável para nossos relacionamentos, precisaremos nos reaproximar dos grandes códigos de orientação da convivência humana. Aquele do qual tenho mais experiência e conhecimento é atrelado à cultura judaico-cristã, mas há vários outros, que pautam outras religiões ou filosofias, e que têm esta mesma proposta.
Seguindo, portanto, os grandes ensinamentos da tradição judaico-cristã, tem-se por orientação mestra para as relações interpessoais a noção de quê:
“Façam aos outros o que querem que eles façam a vocês, pois isso é o que querem dizer a lei de Moisés e os ensinamentos dos profetas”. (fala de Jesus, registrada na Bíblia Sagrada, livro de Mateus capítulo 7, versículo 12).
Proponho então esta noção de autorresponsabilização pelo bem do outro, a quem devo tratar como desejo ser tratado, como princípio fundamental para que nos guiemos em nossas vinculações, que servirá como um verdadeiro antídoto contra o venenoso hábito de culparmos o outro por nossas dificuldades e assim poder assumir fazer todo o bem que queremos receber.
Essa proposta que à primeira vista pode parecer muito simples revela uma nova disposição para viver bem com o outro, o que será condição básica para a implantação de uma cultura de paz e tolerância entre os homens.
Comprometidos uns com os outros, assumindo nossa responsabilidade na manutenção do bem-estar de nossos vínculos, estaremos construindo caminhos para o estabelecimento de relações funcionais, responsáveis e duradouras, pondo fim assim à cultura do descarte relacional e das neuroses e violências relacionais.
E para finalizar…
Para não fugirmos de nosso caminho de reflexão pedirei aos poetas que nos inspirem nesta finalização do artigo, dando-nos o reforço necessário ao nosso pacto de viver melhor com o outro no ano de 2015. E seremos desta vez iluminados pela linda canção, do poeta Renato Russo, do conjunto Legião Urbana, intitulada Monte Castelo e embalados por ela, desejo a todos um 2015 repleto de bons encontros.
Monte Castelo
Legião Urbana
Compositor: Renato Russo
Ainda que eu falasse a língua dos homens
e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É só o amor, é só o amor;
Que conhece o que é verdade;
O amor é bom, não quer o mal;
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É um estar-se preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade;
Tão contrario a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem todos dormem, todos dormem;
Agora vejo em parte, mas então veremos face a face.
É só o amor, é só o amor;
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse a língua dos homens
e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.