Religiões elaboram “manual” de certo e errado

por Aurea Afonso Caetano

“Invocado ou não, Deus está presente”. Jung esculpiu esta frase em uma pedra e a colocou no frontispício da porta de entrada da casa onde vivia. Reafirma dessa forma sua crença acerca da existência de um princípio divino que se faz presente de forma indubitável, e professa assim sua profunda religiosidade.

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 Religião vem do latim religio. São conhecidos dois verbos diferentes que podem ter originado esse substantivo: o primeiro deles religar e o segundo releger. Associar religião ao religar, ou ligar novamente, tem sido a versão mais comum e romântica. Assim através da religião o homem teria a possibilidade de se religar a Deus, ao divino, do qual esteve afastado. Na outra versão, religião como o releger, ou ler novamente, teria o sentido de poder fazer uma releitura, uma nova escolha, ou seja poder se aproximar de Deus através de uma atitude mais ativa, como uma tarefa.

Santo Agostinho utiliza a versão do releger, propondo que através da religião a humanidade possa escolher novamente o Deus de quem havia se separado e com ele, então, se comprometer.

Mas, as religiões institucionalizadas, através de seus preceitos e mandamentos, acabaram por elaborar uma espécie de “manual” de certo e errado, o que pode ou não ser feito. Dogmas foram estabelecidos, limitando ou restringindo a possibilidade de uma relação individual com a divindade. Não posso mais ter uma troca direta, a religião estabelecida faz a ponte com Deus ou com o divino.

As três grandes religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo – foram se firmando e, como de praxe, lutas de poder foram acontecendo. Para poderem se estabelecer, precisavam deter o monopólio da ligação com Deus, cada qual com a seu próprio modo e com seu próprio Deus. Quem não está comigo está contra mim. O meu Deus é maior e mais verdadeiro que o teu Deus.

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E, como unir o Deus que está presente, invocado ou não, e o Deus ao qual quero me reconectar, por escolha, de forma ativa?

Acreditar que há um Deus presente, que dita caminhos, diz o que é certo e errado, é abrir mão da possibilidade de uma conexão direta e individual com o Deus em mim. Jung propõe em sua teoria um homem íntegro e total, um ser humano inteiro que pode estabelecer contato com esse princípio numinoso (ou carregado de numem, de brilho) que está aí fora no mundo, mas também em cada um de nós, partes ou representantes deste mesmo mundo.

Portanto, o que proponho aqui é que cada um de nós possa se comprometer com a própria religiosidade, que possa escolher de forma ativa como fazer essa religação. Torna-se essencial reconhecer, ao mesmo tempo, que o outro além de mim pode ter uma religiosidade diferente; e mais, que não há uma religião ou Deus melhor ou pior, e que nenhum Deus fundou o que hoje conhecemos como instituições religiosas.

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Penso, com *Karem Amstrong, que poderíamos ser menos beligerantes, e mais felizes, se pudéssemos seguir a regra de ouro, a única regra comum a todas as grandes religiões: não faça ao outro o que não quer que seja feito a você mesmo. Mas, para que essa regra de ouro possa ser estabelecida, é preciso que o outro, seja ele quem for, seja reconhecido como igual a mim, com a mesma estatura divina, com os mesmos direitos humanos.

Aí está nossa grande tarefa como humanidade, o Deus, seja ele qual for, invocado ou não, está presente em cada um de nós, simples humanos mortais.

* Karen Armstrong é uma autora especialista em temas de religião.