Por Angelina Garcia
A vizinha achou estranho Dona Augusta chegar com o dinheiro e pedir-lhe que passasse a entregá-lo todo mês ao rapaz da moto.
– Posso, sim, mas não estou entendendo.
– Pois é, meu marido não quer que eu contribua com o hospital. Foi até rude com o moço que vem buscar a doação. Diz que não trabalha para encher a pança de vagabundo.
– Mas o dinheiro não é para ele, é para ajudar as crianças com câncer.
– E quem faz o turrão entender isso? Ele só vê o que quer ver. Colocou na cabeça
que o moço é um aproveitador e não há quem tire.
Mesmo que pareça absurdo, o que o marido via era a mulher entregando a um desconhecido uma quantia em dinheiro, e só. Como ocorre às pessoas rígidas demais, ele se prendeu a este único detalhe e ali permaneceu, por não se permitir ou não conseguir relacioná-lo ao contexto.
Passamos ou já vimos situações semelhantes. Neste caso específico, uma atitude aparentemente simples resolveu o problema de Dona Augusta. Entretanto, a rigidez pode nos levar um pouco mais longe.
Se não encontramos espaço de aceitação, de compreensão, ou pelo menos de discussão a respeito do que pensamos, fazemos, e se não nos dispomos a enfrentar a questão, temos, entre outras, duas possibilidades claras de reação, aceitar sem questionar a posição do outro, ou agir pelas suas costas, para evitar extremos.
No primeiro caso, a pessoa entrega ao outro a responsabilidade de viver por ela, de comandá-la. Embora sofra, e por vezes isso se evidencie em indisposições físicas e mesmo em doenças mais sérias, não enxerga saída.
No segundo caso, ao sentir-se pressionada, ela cria mecanismos, como a mentira, por exemplo, para colocar em prática aquilo que o outro não aceita. Não estamos falando de uma ou outra coisa não dita para se evitar constrangimento e briga desnecessária, mas de relações constituídas no puro disfarce. Junto ao que a pessoa quer fazer, ela já vai tecendo o como fazer para que o outro não saiba, ou para que o fato lhe chegue como ele seria capaz de suportá-lo. É uma tortura. Além de se sentir sempre na iminência de ser descoberta, ela desperdiça sua criatividade em algo nada produtivo, seja a si, ao outro, à relação.
Ainda que pareçam diferentes, na essência as duas formas de reação se assemelham, pois em ambos os casos a pessoa impede que o conflito se configure e o esforço se dá no sentido de atender à rigidez do outro, mantê-la, reforçá-la. Algumas pessoas podem se acomodar a relacionamentos assim, por medo, insegurança, falta de convicção a respeito dos próprios valores.
É importante lembrarmos que o lugar do rígido também é desconfortável, tanto que há circunstâncias nas quais ele sabe que está sendo enganado, mas constatar a falta de coragem do outro para lhe dizer a verdade é suficiente, desde que se sinta afirmado no que reconhece como poder.
Identificar-se com qualquer uma das partes evidentemente não resolve a questão, mas refletir sobre o prazer e o incômodo naquilo que particularmente vivemos pode nos dispor à transformação, sabendo que esta é quase sempre um trabalho lento e árduo, que exige respeito ao tempo e às condições de cada um de nós.