por Fátima Fontes
“Com efeito, embora os corpos humanos estejam em concordância sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável, e assim quanto as outras noções…”.
(Benedictus Spinoza, 1632-1677, livro: Ética. Tradução Tomaz Tadeu, 2007)
Queremos refletir neste texto sobre o desafio do encontro relacional humano em nosso tempo, afinal, como nos colocou tão bem na epígrafe acima o filósofo do século XVII, Spinoza, somos muito discordantes em nossas avaliações sobre como pautar nossos cotidianos, que se dirá então, de nosso conviver (com-viver) diário?
Dando um salto histórico de séculos à frente destes escritos de Spinoza, nos deparamos em 2012 com um mundo ocidental, que estabelece suas pautas relacionais a partir de um individualismo autocentrado, no qual ouvimos e vemos a preconização do distanciamento social, que parece estar centrado na máxima de um credo pessoal no qual: o certo sou eu, como não encontro narcisicamente minha sombra refletida no outro com quem convivo, decido evitar intimidades e relações com o diferente de mim.
Somos então desafiados a derrubarmos esse credo narcísico contemporâneo e em seu lugar propomos outro: o da desidealização de nossas relações, que nos desafia a que aprendamos a crescer na diferença; que nos instrumentará a vencermos a arrogância do ‘sou certo’ e a trocarmos isso pelo doce perfume do ‘pode ser que eu esteja equivocado’, ou pelo ‘nunca havia pensado sob esse seu ângulo de vista’ e assim possamos desejar o estabelecimento dos vínculos e das intimidades relacionais.
Como fio condutor desta nova possibilidade interrelacional propomos uma reflexão que estimule a atualização de algumas virtudes humanas e começaremos: pelo amar, pela alegria, pela generosidade e pelo autocontrole, virtudes que também fazem parte do repertório de convivência de várias sociedades humanas ao longo da história da humanidade e que, sem dúvida alguma, têm garantido que a raça humana não tenha sido extinta até hoje.
Como desenvolver as virtudes que qualifiquem nossas inter-relações?
Pode haver vários caminhos pessoais que auxiliem as pessoas a serem mais amorosas, alegres, generosas e controladas emocionalmente, elencarei aqui para os leitores, pequenos cuidados que também poderão ser úteis nessa repaginação de nossos relacionamentos.
Nosso primeiro e grande cuidado é com o desenvolvimento da conduta amorosa em nossos vínculos e ele irá puxar os outros cuidados, como veremos.
1º) Cultive o amor
Lembro-me que há muitos anos atrás, havia livretos que apresentavam pequenas pautas para o que era o amar e se intitulavam: Amar é…. Eram simples e despretensiosos em termos de análise filosófica sobre o amar, mas falavam de pequenas ações que precisariam ser cultivadas por quem desejasse viver a experiência amorosa, e incluíam algumas ações pautadas na generosidade, tolerância e dedicação ao outro.
Podemos achá-las piegas hoje, mas reciclando a sua forma, o conteúdo das atenções sobre o amar, podem servir de alerta para nossa atual falta de vontade em vivermos as pequenas e grandes gentilezas em nossos vínculos.
O amor tem sido a emoção central conservada na história evolutiva que nos deu origem há uns cinco ou seis milhões de anos atrás, e adoecemos quando nos privam de amor como emoção fundamental na qual transcorre nossa existência relacional com os outros e conosco mesmos (estudiosos do desenvolvimento psíquico como René Spitz, Donald Winnicot, Melaine Klein e outros assim o confirmam). Sendo assim, a biologia do amar é central para a conservação de nossa existência e identidade humana.
O amar que oriundo da emoção e virtude do amor, também pode ser entendido como uma conduta biológica é permeada e marcada pelas aprendizagens sociais, e é apresentado pelo biólogo chileno Humberto Maturana como domínio daquelas condutas relacionais através da qual o outro surge como ‘outro legítimo’ em coexistência com ele mesmo, sob qualquer circunstância. Para esse autor: “O amor não só legitima o outro, o amor deixa tranquilo ao outro ante sua mirada e implica em atuar com ele, de um modo que não necessita justificar sua existência na reação.” (Maturana no livro: Transformación en la Convivencia. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1999, p.45).
Essa tranquilidade identitária trazida pelo amar, nos alegra o corpo e a alma, e assim teremos nossa potência de ação aumentada frente a esse outro, e essa é a noção de alegria que entendemos como virtude, tal qual nos apresenta o filósofo Spinoza. Tratamos, portanto, aqui de apresentar a virtude da alegria sob a égide do sentimento que é ético e que tem uma relação direta com o bem-estar de cada um e do outro, e não como uma alegria de hiena, que parece carregar e exibir uma alegria colada em sua face, mas que nada revela de verdade pessoal e menos ainda relacional. Há que se cuidar da alegria em nossos vínculos, por suposto, em tempos em que parece incomodar a certos espaços relacionais a pessoa que mostra e vive a alegria em seu cotidiano.
2º) Pratique a generosidade
A generosidade é outra virtude que também nos alcança pelo amar, pois já nos afirmam os poetas que é impossível ser feliz sozinho, sendo assim o desejo de compartilhar o ser e o ter, acompanham quase que sequencialmente o caminhar com o outro, em amor. Sermos generosos em nossos vínculos, poderá funcionar como antídoto ante o crescente vazio existencial que vemos grassar em tempos atuais. Parece que falta sentido para o viver, talvez a luta pela sobrevivência, ou pelo sucesso pessoal, a despeito de qualquer coisa que se faça para isso, tenha nos empurrado para uma verdadeira era do vazio (como nomeia esses novos tempos o filósofo francês Gilles Lipovetski). Sermos mais generosos com o outro com quem interagimos somente enriquece nosso existir e nossas relações.
3º) Tenha autocontrole
Por fim queremos trazer à cena dos cuidados em nossas relações a virtude do autocontrole. Temos acompanhado, com lamento, a alta incidência de um Transtorno Psíquico que tem a cara de nosso tempo: o Transtorno do Impulso, que é estudado distintamente do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (essa diferença não cabe ser feita nesse espaço), e que tem como forma de apresentação a absoluta falta do autocontrole, sob este guarda-chuva se alinham os seguintes transtornos: amor e ciúme patológicos; cleptomania; compras compulsivas; impulso sexual excessivo; dependência de internet, jogo patológico; tricotilomania (desejo ou impulso incontrolável de arrancar fios ou tufos de cabelo); Automutilação e o Transtorno Explosivo Intermitente (TEI – leia mais), (Fonte: PRO-AMITI- Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, FMUSP).
Como lamentamos o surgimento de tanto adoecimento emocional e não temos como não o conectarmos existencialmente com as nossas dificuldades no conviver com o outro: parece que nos tornamos incapazes, de alguma forma, de estabelecermos e experimentarmos os limites e as frustrações pessoais e relacionais. Seguramente que esses Transtornos do Impulso são multicomplexos em sua gênese e também em seus tratamentos, mas aqui queremos assinalar a sua relação com a perda social e educacional do autocontrole.
Fica então o desafio final frente ao uso desta virtude em nossas interrelações: aprendermos ou reaprendermos a nos frustrar, a adiar nossos desejos e a refletir sobre a realidade de nossas necessidades, são mais que bem-vindas ações para o bom encaminhamento de nossos laços interrelacionais.
E como não poderíamos encerrar essa reflexão sem incluirmos nela a poética humana, compartilhamos como ponto reflexivo final a linda canção, se a quiserem escutar segue o endereço para também ouvi-la: http://www.vagalume.com.br/marisa-monte/apagaram-tudo.html
Gentileza
Autoria: Marisa Monte
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
A palavra no muro ficou coberta de tinta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro tristeza e tinta fresca
Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras e as palavras de gentileza
Por isso eu pergunto a você no mundo
Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é um circo
Amor palavra que liberta
Já dizia um profeta
Apagaram tudo
Pintaram tudo de cinza
Só ficou no muro tristeza e tinta fresca
Por isso eu pergunto a você no mundo
Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria
O mundo é uma escola
A vida é um circo
Amor palavra que liberta
Já dizia o profeta