por Monica Aiub
“Aquele que é mestre na arte de viver faz pouca distinção entre o seu trabalho e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, entre a sua educação e a sua recreação, entre o seu amor e a sua religião. Distingue uma coisa da outra com dificuldade. Almeja, simplesmente, a excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos demais a tarefa de decidir se está trabalhando ou se divertindo. Ele acredita que está sempre fazendo as duas coisas ao mesmo tempo” (Domenico de Masi, O Ócio Criativo).
“Ócio: 1. Descanso do trabalho, folga, repouso; 2. Tempo que se passa desocupado; vagar, quietação, lazer, ociosidade; 3. Falta de trabalho; desocupação, inação, ociosidade; 4. Preguiça, indolência, moleza, mandriice, ociosidade; 5. Trabalho mental ou ocupação suave, agradável” (Verbete do Dicionário Aurélio).
O que você faz com seu tempo livre? Você tem tempo livre? Com o que você se ocupa? O que você faz nas 24 horas de um dia? Você tem uma rotina diária? Como lida com ela?
Diante do convite para escrever sobre o ócio, o paradoxo: trabalho quase que 24 horas por dia, desejo dias mais longos, para trabalhar mais. Dizem que sou viciada em trabalho, como posso escrever sobre o ócio? A perplexidade inicial provocou uma busca sobre possíveis significados para o ócio em nossa sociedade.
É corrente a ideia que defende o ócio como fundamental à filosofa: “pensar requer ócio”; qual seria o conceito de ócio presente nessa ideia?
Desde os primórdios da formação das sociedades complexas, trabalho braçal e trabalho intelectual são divididos, sendo predominante a atribuição do trabalho pesado às classes menos privilegiadas, consideradas, em algumas sociedades, como inferiores. Aos privilegiados, o trabalho intelectual, o ocupar-se com as artes, as ciências, o governo, o lazer.
Na Grécia Antiga, a sociedade era dividida entre cidadãos, não-cidadãos e escravos. Os não-cidadãos e escravos eram considerados inferiores, cabendo-lhes tarefas braçais, tidas como indignas para os cidadãos. Com herança na tradição grega, os romanos denominaram ócio (otium) as ocupações com o trabalho intelectual, em oposição ao negócio (nec-otium, negação do otium), destinado a atender às necessidades de subsistência da sociedade. A dedicação ao ócio era, nessas sociedades, a atividade própria do ser humano, embora poucos tivessem acesso a ela.
Relógio moral
O advento da sociedade capitalista exige a ampliação dos negócios. Vindos de uma classe habituada a trabalhar, os burgueses valorizam o trabalho braçal, a técnica. O trabalhador vende sua força de trabalho, e institui-se a moral do trabalho produtivo e do tempo útil, incutindo no ser humano uma espécie de “relógio moral”. É preciso dedicar-se a um trabalho que se transforme em mercadoria e traga lucros. O trabalho intelectual, anteriormente valorizado, passa a ser indigno; o ócio, antes necessário, passa a ser motivo de exclusão social.
Atualmente, o trabalho intelectual também é medido por produção: números, quantidade de artigos publicados, quantidade de obras de arte compostas, quantidade de pesquisas desenvolvidas. Ainda há instituições que contratam por horas de trabalho, exigindo e controlando a presença e a atividade de seus “colaboradores”.
É possível imaginar um músico que componha com hora marcada? E um artista plástico que precise entregar cinco quadros em 12 horas? Sente-se ai e só levante quando o livro estiver pronto. É possível trabalhar dessa maneira?
O seu dia só termina quando você conseguir preencher todos os relatórios e planilhas, quando atender vinte pacientes, quando visitar trinta clientes ou conseguir fechar dez contratos, quando tiver limpado toda a ala B.
Será que ainda conseguimos significar ócio como as atividades próprias do humano: intelectuais, científicas, artísticas, sociais? Ou o ócio tornou-se, em oposição a todo e qualquer forma de trabalho, a desocupação, a inação? Necessitamos de ócio para avaliar nosso cotidiano ou por que nos submetemos a um trabalho escravo em uma sociedade “democrática”?
Relógio interno
O relógio interno que controla o tempo cobra: o que fiz hoje? É preciso uma grande lista para não ser classificado como inútil, preguiçoso, indolente. O que você vai fazer no final de semana? Dormir. Ou então meu final de semana será repleto de tantas e tantas atividades de lazer que iniciarei a semana com alto grau de estresse.
Já atendi muitos aposentados que passaram a vida trabalhando, sofrendo cotidianamente com um trabalho “torturante”, sonhando com a aposentadoria. Logo após os primeiros dias de aposentadoria, entraram em depressão, adoeceram. A sensação de inutilidade, de peso social tomou conta de algumas dessas pessoas. Outros, apesar de se sentirem bem com o fato de não necessitarem mais trabalhar diariamente, sentiam-se envergonhados por sua “ociosidade”, ainda que estivessem repletos de atividades de lazer. Outros trouxeram como causa de seu sofrimento o fato de serem “obrigados” pela idade a uma aposentadoria compulsória, apesar de amarem seu trabalho e não saberem viver sem ele.
O assunto da clínica, em alguns desses casos, foi encontrar atividades nas quais a pessoa pudesse encontrar o mesmo prazer que encontrava no trabalho, ou formas de dar continuidade a seu trabalho fora da instituição onde trabalhava.
Também atendi alguns empresários bem-sucedidos, que apesar do sucesso nos negócios, não se sentem bem, porque não “vivem”, não se dedicam às atividades que lhes trazem prazer. Quantos não foram os casos de depressão nas férias: o que fazer com meu tempo livre? Talvez fosse melhor continuar trabalhando…
Ócio e existência
Alguns dizem que o ócio é necessário para pensar na própria vida, a comum frase “parar para pensar”. Será que paramos para pensar? Será necessário suspender nossas atividades cotidianas para refletir acerca delas?
Atualmente a distinção entre ócio e negócio é extremamente difícil, pois muito do que anteriormente era considerado ócio, tornou-se negócio. Qual o significado poderíamos atribuir ao ócio na atualidade?
Em seu texto Política, Aristóteles afirma que a escravidão somente deixaria de existir quando as ferramentas trabalhassem por si mesmas. O desenvolvimento tecnológico busca a construção de máquinas que trabalhem por si mesmas para que não precisemos nos dedicar ao trabalho braçal. Contudo, apesar de substituirmos muito do trabalho braçal por atividades executadas por máquinas, não nos preparamos para modificar nossa forma de pensar e de viver. Deixamos de ser escravos a partir da tecnologia ou nos tornamos escravos da tecnologia?
Retomando a epígrafe de Masi, por que nos submeter a um trabalho torturante? Por que trabalho, conhecimento e diversão não podem constituir uma única e mesma atividade? Quando Masi defende o ócio criativo, sua tese supõe romper a dissociação existente entre trabalho, lazer, conhecimento, realização. Não é preciso trabalhar oito horas, dormir oito horas e ter oito horas de ócio. É preciso incluir, no cotidiano, atividades que reúnam o descanso, o lazer, o trabalho e a aprendizagem.
Muitos me perguntam: como você consegue trabalhar tanto e parecer tão bem? Como é possível que você não se canse de trabalhar? Minha resposta é o prazer proporcionado pelo trabalho que desenvolvo. Trabalho, me divirto e aprendo no consultório, na sala de aula; mas também trabalho, me divirto e aprendo quando encontro os amigos, quando assisto uma peça de teatro, um filme, um concerto, quando leio um livro, quando escrevo um texto.
Como você se sente em seu trabalho? Em sua casa? Com suas atividades? Com você mesmo? Se a resposta não lhe agrada, quais são as possibilidades de modificar isso?