Se não temos consciência dos conflitos, permitimos seu aprofundamento

por Monica Aiub

Em seu livro póstumo, Ipseitas (Autêntica, 2017), Bento Prado Júnior afirma: “Em todo caso, nesta aurora do século XXI, estamos mesmo em plena segunda metade do século XIX” (2017, p. 147). O contexto da afirmação é o capítulo, intitulado O lugar do cogito na filosofia analítica e nas “ciências cognitivas”, no qual o autor aponta para um dos paradoxos da contemporaneidade, especificamente na filosofia, que consiste no fato de pensadores contemporâneos ignorarem as grandes obras filosóficas do século XX, retornando ao naturalismo do século XIX.  Ele prossegue afirmando que a esperança seria surgirem pensadores com a estatura de Frege, Husserl ou Bergson. E finaliza o capítulo com o seguinte parágrafo:

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“Mas é difícil imaginá-lo hoje, num império dominado por figuras rústicas como Bush, Schwarzenegger, Charlton Heston (antecipados no século passado por Ronald Reagan). O mundo atual nada tem a ver com o filme Matrix, que desfaz sua concretude no fluido impalpável do virtual – se parece antes com A rosa púrpura do Cairo, em que o mocinho abandona o mundo imaginário projetado na tela para circular, com seu bom coração e seu chapéu branco, entre os espectadores do mundo real. Mas de modo diferente: são os duros cowboys do cinema que saltam na tela, de arma em punho, para impor o seu domínio sobre o planeta.”

Não é meu objetivo tratar, aqui, especificamente, da interessantíssima questão do retorno ao século XIX nas reflexões sobre o cérebro e a consciência, que o autor faz a partir da análise do livro de Rodolfo Llinás, I of the vortex: from Neurons to Self (Cambridge, MA; London: MIT Press, 2001).  Para tal, vale a leitura de Ipseitas! Quero trazer apenas a imagem dos “duros cowboys do cinema que saltam na tela, de arma em punho, para impor o seu domínio sobre o planeta”, apresentada na conclusão do texto.

O que lhe vem, leitor, quando pensa nesta imagem?

Eu penso nos “duros cowboys” que surgem em meio às novas tecnologias e à nova ordem econômica. Cowboys que representam não apenas a violência das soluções “à bala”, ou seja, o poderio bélico, a violência de todos os tipos; mas também o retorno a padrões sociais e culturais do século XIX. Eu penso no embrutecimento das relações, da própria vida, hoje levado para as telas de nossos computadores e celulares e refletidos em nossas ações e relações.

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Bento Prado Júnior faleceu em 2007, apresentou este capítulo do livro em palestra na CPFL em 2006 , intitulada a Aurora do século XXI: Onde estamos? (https://www.youtube.com/watch?v=468-fPoNArk). Ao final da palestra, respondendo à questão acerca do papel da filosofia para levar os cowboys de volta para a tela, ele aponta para a leitura de Fukuyama diante da queda do muro de Berlim – que afirmou o fim da luta de classes, o fim da história –  e destaca as consequências de tal leitura: “o esvaziamento da consciência dos conflitos e um aprofundamento deles”, e completa, “uma alienação crescente em seu substrato histórico”.

Conflitos e existência   

Sem a consciência dos conflitos, vivemos como se eles não existissem e, consequentemente, os tornamos mais intensos, mais profundos. Naturalizamos o conflito e vivemos como se ele fosse inerente à nossa existência. Tornamo-nos cada vez mais violentos, agressivos, competitivos, porque o conflito é natural ou porque estamos “todos no mesmo barco”, somos todos iguais (e ao mesmo tempo não somos). Não observamos a origem, o substrato histórico dos conflitos e, por isso, não compreendemos como a economia, a tecnologia, a vida, a cultura, a ciência e a própria filosofia se constituem. Assim, vivemos alienados, com um esvaziamento da consciência de nosso próprio existir.

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A filosofia fica empobrecida, pois não se relaciona com o real; a ciência é vista como obstáculo para o pensamento; a técnica e a tecnologia são vistas como soluções para todas as questões e a educação é fragmentada, tecnicizada. A crescente escolarização da população, ao invés de apropriá-la com a compreensão do real, a expropria, na medida em que recusa o pensamento e valoriza excessivamente a técnica, a especialização, a fragmentação.

Falta-nos a consciência histórica, a visão do todo, para que possamos compreender o real, o mundo que habitamos e suas constantes mudanças. Por que Bento Prado Júnior considera como nossa esperança o surgimento de pensadores como Frege, Husserl ou Bergson? Explica ele, na palestra: porque eram filósofos que tinham um conhecimento da história da filosofia, que tinham uma visão do todo.

Se não conhecemos as origens de nossos conflitos, permanecemos neles, alimentamos e intensificamos cada vez mais tais conflitos. Se não temos consciência deles, se vivemos como se eles não existissem, suas raízes se tornam mais profundas e somos aprisionados por elas, tornando-nos escravos de nossa alienação.

Conhecê-los, compreendê-los historicamente, não nos torna mais tristes ou depressivos, como afirma o senso comum, mas nos permite encontrar saídas, criar novas formas de viver, ao invés de sermos manipulados por aqueles que possuem este conhecimento e fazem uso dele para promover mais conflitos que lhes sejam lucrativos.