por Roberto Goldkorn
Conheci há muitos anos um ex-executivo que largou tudo para se tornar marceneiro. Ele teve despertado em si uma forte espiritualidade, que o conduzia por novos caminhos como, por exemplo, a renúncia à competitividade estéril do “mercado”. Passou a se vestir só de branco e se mudou de São Paulo para a sua casa numa cidadezinha aprazível.
Sua mulher o acompanhou, pois além de amá-lo muito, também sentiu o apelo de 'valores mais espirituais'. Seus filhos pré-adolescentes porém não assimilaram bem a mudança. Em pouco tempo o “Júnior” começou a dar sinais de rebeldia. O pai estoicamente aguentou a destruição de dois carros em “rachas” irados, a primeira bagana de maconha, mas não resistiu quando o Júnior resolveu pintar seu quarto de preto com caveiras brancas. O meu amigo surtou, saiu da atitude zen, para um comportamento esperado de um troglodita devastador. Mais tarde caiu numa prostração tipo poço sem fundo.
Nas nossas conversas tentei mostrar a ele que aquilo não era uma provação, nem um teste de sua convicção espiritual, afinal quem seria o articulador do teste? E se houvesse alguém (tipo Deus, anjos, etc) por que ele era o escolhido? Será que a sua vida tinha toda essa importância? Tentei mostrar a ele que o mundo era feito dessa diversidade mesmo, e que o inferno era uma concepção individual: cada um cria o seu ou permanece no seu, mas sempre há uma escolha envolvida, ou QUASE SEMPRE.
Essa introdução toda é para falar dos seres mais sensíveis, mais para lá no universo espiritual que para cá do mundo material denso. Sei que entre os meus leitores, se é que existe essa categoria, há muitas pessoas que vislumbraram a dimensão espiritual e seus valores. Sei também o quanto é penoso para essas pessoas conviverem com a crueza, o tolo imediatismo e sensorialismo do nosso mundinho carcará sanguinolento.
Convivi na minha juventude com um amigo que de repente se descobriu um ser 'iluminado'. Parou de comer carne, virou iogue, falava sempre mansamente, aboliu os palavrões e ficou com aquele olhar beatífico dos seres que 'sabem a verdade suprema' e que nela habitam, pelo menos parcialmente. Ele me relatou um dia que ao andar pela rua, tinha sempre de atravessar cada vez que tinha de passar em frente a um boteco ou a um açougue. Senão ficaria mal. Fiquei muito impressionado com aquilo e me senti um tosco, pois apesar de me achar espiritualizado, também passava em frente aos açougues e aos botequins de pinguços e não sentia nem cócegas.
Mas como a maioria dos seres que se elevou sem ser de elevador, tudo é muito mais um desejo de ser do que um ser propriamente dito. Um dia estava num ônibus e o vi passeando com uma moça e conversando animadamente em frente a um botequim de cachaceiros!
Não quero dizer que não sofram com a estupidificação das gentes. Sofrem porque não conseguem conviver com as diferenças de modo sereno. Entendo que para seus valores mais depurados o varejo não espiritual das massas parece pobre, vil e uma perda de tempo precioso. Até concordo. Entendo que por terem superado certas premências do corpo de desejos (fumar, beber, drogar-se, comer carne, ganância, agressividade, compulsão sexual, etc) lamentem não poder cooptar o resto da humanidade para esse estado de maior equilíbrio e paz interior. Mas essa sensibilidade pode ser uma deficiência se não vier acompanhada de um senso de realidade e de capacidade de agir prontamente num mundo nada zen.
Conheci pessoas ótimas, sensíveis, dedicadas à elevação da humanidade a patamares mais elevados, mas absolutamente incapazes de trocar o óleo do carro. Com o motor fundido, se perguntavam se aquilo não seria alguma maracutaia do “maligno” para afastá-las dos caminhos para a divindade. De outra vez estávamos no meio de uma conversa animada quando a luz se apagou. Até que foi legal continuar à luz de velas. Mas perdeu a graça quando eu soube que a minha anfitriã havia esquecido de pagar as contas de luz! Para os mais jovens digo e repito de forma obsessiva: Pés no chão! Foco! Estejam ligados! A vida é aqui e agora! Antes de viajar (no sentido literal mesmo) verifiquem o tanque de combustível. Por mais que desejem, o carro não será movido a energia mental, e se ficar sem combustível, não esperem que os 'mestres ascencionados' venham empurrá-lo.
Comprometer-se com um programa de desenvolvimento espiritual, rejeitar certos hábitos “decadentes” e adotar uma postura mental mais despojada de mesquinharias materialistas, não é incompatível com o estar no mundo. Refinar seus gostos tanto musicais quanto alimentares, não precisa ser uma renúncia ao uso lúcido das ferramentas sociais à nossa disposição. Ser espiritualizado não é uma autorização divina para não pagar os impostos ou para não tomar banho.
Quando esses não integrados demonstram essa incapacidade de lidar com o bê-a-bá das regras do jogo, estão adotando uma atitude masoquista. O rebote sempre vem e vem machucando. O pior é que quase sempre machuca mais aqueles que estão à volta do 'zen noção', pois eles acabam assimilando os reveses como provas dos sacrifícios naturais da sua opção. Já ouvi muitas vezes a frase: “se Jesus que era Jesus acabou na cruz, não podemos esperar coisa muito melhor.” Ou seja, eles e elas veem os sofrimentos causados por sua própria imperícia como provações do plano espiritual para testar a sua opção de vida.
A busca da elevação espiritual não se faz dando-se as costas à realidade seja ela qual for. A espiritualidade não pode ser desculpa para a nossa incompetência em lidar com o mundo à nossa volta. Ser zen não deve ser um pretexto para a preguiça, a covardia, ou a tibieza mental. Parafraseando a minha avó: o verdadeiro espiritualista mantem um olho no peixe e outro no gato.