por Roberto Goldkorn
Se existe uma área da existência humana que está no topo do ranking das causadoras de dor e frustração, essa é certamente a da família e suas inter-relações.
A imagem que me veio a mente nesse momento em que escrevo (maio de 2013), é a da mãe e da filha do sequestrador de Ohio (EUA), que manteve três moças cativas em seu porão por dez anos sujeitando-as a estupros seguidos e maus tratos. Elas que estão nas pontas desse painel de dor e revolta expressam bem a perplexidade "familiar". A mãe se pergunta: Como eu pude ter gerado um monstro desse quilate? A filha: Como eu pude ter sido gerada por esse monstro a quem chamei de pai?
Na base dessa pirâmide de questões aparentemente sem respostas estão fatores culturais, psicológicos e espirituais.
Entre os fatores culturais acredito que o mais relevante é a expectativa pelo desempenho dos "papéis" no script familiar de cada cultura. A grande maioria das pessoas busca se enquadrar em seu papel familiar, aquele desempenho que a sua sociedade e seus valores espera dele ou dela como pai, mãe, irmão, filho e etc. Embora se mantenham mais ou menos estáveis desde os primórdios, esses papéis vão se alterando, não só ao longo do tempo, como também de sociedade para sociedade.
Há registros de que em épocas pré-históricas, quem comia primeiro era o pai, em seguida os filhos e se sobrasse alguma coisa a mãe podia se servir. Cabia à mãe o esforço físico de carregar a "casa" nas costas durante as mudanças da família. Em outras sociedades os idosos da tribo ou da família incapazes de produzir, reproduzir ou ir à guerra, eram abandonados na selva ou no deserto para morrer. Mas no geral, o que se espera da mãe é que cuide e proteja sua prole, do pai que mantenha seguro o espaço e os membros da família e dos filhos que cresçam, obedeçam e mais tarde cuidem dos pais idosos.
Os papéis familiares têm a função de formatar a personalidade dos indivíduos, para justamente preservar a continuidade da família e o equilíbrio dos poderes internos. Mas por outro lado, servem como camisa de força limitando a manifestação individual. Porém como disse Freud, a história da civilização é a história da repressão.
Quando um indivíduo resolve, por algum motivo (e podem ser tantos que seria impossível listá-los) romper com o seu papel no script familiar, vamos observar o desmoronamento dessa peça. Uma mãe que se recusa a cuidar do filho pequeno, ou que manifesta desejo sexual sobre ele; um pai que rouba recursos de sua família para manter seu vício, ou ao invés de proteger, ameaça e coloca em risco a integridade de seus filhos; filhos que maltratam ou matam seus pais, irmãos e etc. Isso é uma violação grave dos papéis que a sociedade estipulou para os membros da família.
Essa quebra de expectativas, frustra e gera dor nos demais membros e na sociedade em geral. Mas quais seriam as razões dessa "quebra de contrato" social?
A meu ver existe um fator nuclear que precisamos voltar ao passado para entender. Esse fator é de natureza "espiritual" e chamo de "Carma" de família. Obviamente se você não acredita que vivemos outras existências e que projetamos para frente programas assimilados em vidas anteriores, sugiro parar a leitura por aqui, porque não teremos um código comum.
Mas se está lendo essa linha presumo que no mínimo está curioso (a) para saber o que vou falar.
Um dos grandes fatores promotores dos links que levam as famílias a reencarnarem são justamente as emoções e sentimentos compartilhados.
Familiares estão presos numa teia de aranha de fios tecidos pelas emoções e sentimentos gerados pela proximidade, e naturalmente pelo desempenho que seus papéis irá produzir ao longo do tempo, bem como de um objetivo comum ao grupo. Assim, o amor de mãe se permanecer estável, pode ser forte o bastante para "trazer" novamente os filhos numa próxima vida.
Esse, porém, é um quebra-cabeças altamente intrincado onde fatores como grau de evolução pessoal, apegos, ódios, culpas, acidentes… podem e vão interagir para tornar essa equação num jogo de altíssima complexidade. Por exemplo, se uma mãe teve uma velhice longa e debilitante e acabou sendo cuidada por uma filha por muitos anos, essa relação numa próxima vida pode vir invertida.
O peso da cultura também define muitas relações, por exemplo: uma mulher jovem que foi praticamente obrigada a se casar com um homem mais velho e autoritário, encontra um jovem romântico e perfeitamente encaixado em suas fantasias românticas e escapistas e desenvolve por ele um grande amor platônico. Esse amor, pelos costumes da época é proibidíssimo, e mais ainda se houver um comprometimento com dogmas religiosos. O que pode acontecer? Numa vida seguinte, essa mulher pode "trazer" esse jovem como seu filho (o amor vai continuar sendo platônico), o marido forte e mais velho "traz" a mulher (para ela foi frustarnte a relação, mas para ele não), e aí se cria um triângulo amoroso. Vamos ver o pai desde cedo demonstrando uma animosidade sem explicação pelo filho, a mãe devotando toda a sua atenção para o filho, redirecionando seu afeto e até a sua sexualidade (que agora está sublimada pelo manto do amor maternal), deixando o marido frustrado, sentindo-se abandonado e alimentando seu ressentimento pelo filho/rival.
Claro que estou simplificando relações complexas, mas basicamente são esses os componentes do coquetel familiar.
Existe o outro lado. Famílias desagregadas, pela miséria, pela guerra, por desastres naturais, onde a troca contínua de sentimentos e afetos não foi possível, tendem a não gerar vínculos suficientemente fortes para promover a reencarnação daquele núcleo. O que vai acontecer com essas pessoas então? Vão reencarnar de forma aleatória, talvez buscando justamente casais sem história – com esses "buracos"- onde voltem a ser estranhos, e provoquem relações fragmentadas, ressentimentos e distância. E continua assim até que um indivíduo mude a história, estabelecendo vínculos pelo amor e comprometimento.
Na Idade Média, era muito comum que famílias ricas e detentoras de poder, por esperteza e ignorância se fizessem "casar" entre si – irmãos com irmãs, pai com filhas, para manter a "pureza" da linhagem e os bens.
Isso como todos sabem gerou um empobrecimento genético, que é apenas a face física do que acontece quando mágoas, ódios, frustrações, paixões, acertos de contas, são requentados, requentados e requentados, sem possibilidade de renovação, sem oxigênio novo para melhorar a "mistura".
Quando observo "carmas" muito pesados de família, com graves conflitos internos, imagino logo se tratar de famílias que vêm reencenando as mesmas peças, com os mesmos atores, e os mesmos scripts há muito tempo. Isso raramente é "saudável", porém essas companhias de "atores" se mantêm unidas pelas emoções fortes, a volúpia do poder, as intrigas, invejas, as paixões mantidas nas sombras por serem "proibidas" (mas mesmo reprimidas não estão suprimidas), os assuntos (graves, ou considerados graves) não resolvidos em vida e a sensação enganosa de serem especiais: "nós contra o mundo!"
O imenso desafio para pessoas esclarecidas e desejosas de dar um passo qualitativo adiante em relação ao equilíbrio é justamente esse: "Amar sem apego!"
E quando digo amar, foi apenas uma questão de preferência pelas palavras, poderia ter dito: odiar sem apego, invejar sem apego, preocupar-se sem apego e etc. O truque é esse, desapegar-se, fazer diminuir o peso dos papéis: de pai, de mãe, de irmã, etc e aumentar o peso do indivíduo na relação familiar. O pai pode e deve invadir o papel da mãe, a mãe pode e deve invadir o papel do pai, mas antes de tudo, precisamos agir como seres humanos éticos, com apenas uma ética que seja igual para a família e para a sociedade.
Nesse fim de semana ouvi na TV o depoimento de uma mãe cujo filho atacou fisicamente a professora e foi expulso do colégio, que declarou: "Meu filho estava sendo perseguido, por ela, e só se defendeu"; mesmo diante das imagens e depoimentos. O que essa mãe está fazendo? Está encenando um (falso) papel maternal, está fazendo como os aristocratas medievais casando entre si, achando que isso preservaria a linhagem. Ela, sem saber está se defendendo da falência de seu papel. Ela não entedeu que os pais, assim como os governos, não podem tudo, não sabem tudo e não conseguem ter controle absoluto sobre aquele indivíduo, que tem a sua própria história (e que em 99% dos casos todos desconhecemos).
Se a mãe do monstro de Ohio saísse em sua defesa, achando que esse é o papel da "mãe", ou a sua filha o fizesse achando a mesma coisa, aí sim elas estariam sendo vencidas pela tirania dos papéis e fazendo o jogo do "inimigo".
Não se pode evitar de parir monstros ou de ser filhos e filhas deles, mas podemos elevar nossas próprias vidas, elevar nossa consciência, para que a distância que nos separa desses indivíduos estragados, seja estelar – e assim ir melhorando aos pouquinhos a família e a humanidade.