por Aurea Afonso Caetano
Era uma vez…
Contamos histórias: para dotar o mundo de sentido, para organizar nossas vivências, para encontrar nosso lugar na vida e na relação com o outro. Histórias são moeda de troca entre nós.
Reconhecemos um semelhante ao perceber que sua história é parecida com a nossa, que trilhamos caminhos semelhantes, que vivemos experiências parecidas. O conhecido nos aproxima, nos acalma, aquieta nossos medos e temores mais profundos.
Do já conhecido não poderão surgir demônios assustadores, não seremos expostos a desafios muito perturbadores, não seremos tão confrontados: poderemos manter nossa identidade quase de forma inexpugnável. "Dize-me com quem andas e te direi quem és".
Precisamos, não apenas saber, mas, também contar quem somos, o que fizemos, para onde vamos e… com quem andamos. Alívio, reconhecimento, ufa! Estou entre iguais! Mais do mesmo?
Busca de identidade própria e de caminho individual não é estimulada
O grande desafio é manter a individualidade num momento coletivo em que acreditamos precisar "ter um milhão de amigos e bem mais forte poder ficar". Vivemos em uma sociedade que prioriza os movimentos coletivos, a extroversão, o relacionamento "para fora", com o outro, a festa, o grupo e coloca lá embaixo, no último degrau da escala de prioridades, a necessidade da introversão, da apropriação da própria identidade, da busca de um caminho individual, do silêncio e do recolhimento.
Há uma expectativa, para não dizer uma cobrança, de que sejamos altamente efetivos, que tenhamos uma atuação exemplar no mundo. Espera-se que sejamos sujeitos ativos, funcionais, autônomos e com uma eficácia absoluta tanto em grupo quanto de forma individual, desde que esse individual não atrapalhe ou contamine o funcionamento grupal: nada de lobos solitários por aqui, a coerência da matilha deve ser preservada a qualquer custo!
Mas, ao mesmo o tempo, é esperado que sejamos sujeitos autônomos, bem adaptados, adequados, íntegros e autossuficientes, que funcionemos bem, que não adoeçamos. Para dar conta de todos essas exigências, só mesmo um super-herói. E não estaremos todos nós em busca da vivência do super-herói?
Não estaremos comprando a ideia de que para vencer todas as tarefas propostas pela sociedade, que de alguma forma tomamos como verdadeiras, precisamos nos armar de nossas couraças /fantasias de super-herói e sair por aí, sem descanso, salvando o mundo, a nós mesmos e a nossos semelhantes?
Mas onde fica a kriptonita, a ferida incurável do Batman, as mazelas do Volverine, a dor pela ausência do pai do Homem-Aranha? Onde está o tigre que acompanha as "Aventuras de Pi", ou o malvado cujo coração duro só amolece a partir da relação com as pequenas órfãs.
Todas essas histórias falam de super-heróis, cujas feridas incuráveis são ao mesmo tempo motivo inicial da jornada quanto lembrança constante de sua humanidade.
O que é ser um herói de verdade?
Afinal, herói de verdade é aquele cujo ferimento, dor ou falta estão indelevelmente marcados no corpo e na alma, constituem a verdadeira essência de seu ser e não podem ser desconsiderados sob pena de enfraquecimento da inteira personalidade.
Herói de verdade é aquele que não se esquece jamais de sua ferida, que está o tempo todo cuidando de caminhar, se desenvolver, progredir em seu caminho heroico cuidando e protegendo, ao mesmo tempo, sua ferida, marca indelével de sua humanidade.
Era uma vez… uma sociedade na qual as pessoas podiam se associar em grupos de pertencimento sem que sua verdadeira humanidade fosse esquecida. Seria bom poder contar uma história real, sempre construída na verdade, com personagens empreendendo uma jornada em busca de algo que lhes falta. Não somo super-heróis infalíveis, nenhum deles é. Somos seres humanos, misto de super-heróis com simples mortais cheios de feridas incuráveis.
Iguais e diferentes ao mesmo tempo. Como seria importante poder compartilhar as conquistas e vitórias, as fotos nas quais saímos bem, mas também as dores e feridas, ou aspectos menos luminosos, ou bem enquadrados, de nossas vidas. Talvez apenas assim nossa personalidade real possa se desenvolver através de uma troca verdadeira com nossos companheiros de jornada.